Sofrimento

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  Chifres? Garras? Vermelho? Um olhar desafiador? Uma força imensurável? O que era preciso para se adequar a definição de monstro? A resposta era simples.

Medo

  Tudo que gera medo acaba por tornar-se um monstro para quem se assusta, por isto também era um conceito relativo. Era isto que eu refletia, mas, uma mulher me fez mudar de ideia. Alguém que era metade humana, metade monstro...

  Após a minha exclamação, referindo-me a pressuposta Eleonor, Serena me deu um beliscão, enquanto seu irmão retomou a dianteira da prosa.

- Desculpe a falta de modos da minha companheira, ela parece ainda não estar acostumada as mudanças do mundo - disse Alex, todo animador, tentando abafar o meu comentário impertinente.

  Eu realmente me senti mal por ter dito aquilo, afinal a mulher me pareceu ofendida, mas a culpa não era minha e sim destes dois que nem chegaram a me dar informações a seu respeito. Pensei em desculpar-me de imediato, mas não me pareceu uma boa ideia no momento.

- A reação dela é natural, está tudo bem - falou a mulher, com uma voz seca que combinava com a sua expressão triste - De qualquer forma, entrem. É realmente raro haver visitas por aqui.

  Eleonor então se abaixou um pouco e entrou no trailer, e como pedido, nós a seguimos. A mulher parecia estar na casa dos 30, apesar do ar monótono que exalava, além de possuir longos cabelos negros na parte humana.

  Metade de seu corpo era cinzento e asqueroso, com deformidades gritantes e assustadoras, como ossos protuberantes e quase expostos e braços saindo das costas. Seu nariz parecia quebrado ao comparar os dois lado, enquanto sua boca parecia rasgada devido ao tamanho da direita, com presas de anomalia.

- Por que ela tem essa forma? E como consegue falar? - perguntei a Serena, que vinha logo atrás de mim, como se estivesse pronta para me dar outro beliscão caso eu falasse outra besteira.

- Se acalme - respondeu a menina, séria - ela irá te explicar.

  Nós entramos no trailer, e apesar do que eu pensava era bem espaçoso. No centro havia uma mesa quadricular, com um lindo vaso florido no centro, além de duas portas que davam, provavelmente, para o banheiro e outro cômodo. Mas, mesmo estando tentando me distrair, para me convencer de que aquela era uma mulher normal e de quem não temer, algo realmente me assustou.

  Recuei alguns passos, aponto de esbarrar em Serena, mas não gritei e nem disse nada. Com medo do que poderia acontecer, simplesmente me sentei na mesa junta aos outros.

"Um cadáver... tem um corpo ali... no canto... um esqueleto"

- Bem - começou a mulher, com uma xícara de água na mão esquerda, agitando-o como se fosse vinho - para mim é uma honra recebe-los aqui, como disse da última vez. Mas creio que não vieram atrás de mantimentos como da última vez.

- Precisamente! - concordou Alexander, apontando para Eleonor de forma extrovertida - Desta vez, carecemos da vossa ajuda para algo ainda mais importante! Alguém que pode mudar nossas vidas! Informações!

"O jeito como fala ainda me irrita..." pensei, cerrando os punhos sobre a mesa.

A mulher abaixou a xícara.

- Informações? Sobre oque exatamente? Se me lembro bem já lhes contei que tenho esta forma porque consegui resistir ao efeito da viagem no tempo.

- Exato, mas gostaria que nos disse tudo do que se lembra desde o momento da viagem, principalmente porque temos uma pessoa nova conosco hoje - respondeu Alexander ao me dar um tapinha nas costas.

  Eleonor, que estava indiferente quanto a mim, me olhou por inteira, como se esperasse que eu lhe disse algo. Sem saber o que dizer naquela situação, eu simplesmente me apresentei.

- Ah! Err me chamo Leslie, prazer.

- O prazer é todo meu - disse Eleonor finalmente sorrindo, ou quase - é sempre indescritível conhecer novas pessoas, espero que também possa se tornar uma leitora minha.

- Huh? Leitora?

- Sim, a Eleonor é uma escritora incrível! - elogiou Serena, enquanto a mulher dizia "não exagere, não é pra tanto".

  A menina então se levantou e foi até a mochila que Alex vinha carregando, e do seu compartimento maior ela trouxe três grandes e pesados livros, todos de capa dura e da cor branca.

"Então isso que pesava tanto!"

- Veja! Estes são apenas alguns dos livros escritos pela Eleonor, foram todos feitos à mão! - disse Serena, com os olhos brilhando de tamanha fascinação.

  Tentei segurar um dos livros, mas ao testemunhar o seu peso, decidi simplesmente abri-lo sobre a mesa. De fato, era todo feito à mão, todas as 550 páginas. Cada um com uma história diferente, e o que eu olhava chamava-se "Sofrimento palpável".

"Como diabos ela escreveu algo tão grande? E parece ter mais deles... espera! Para ter conseguido escrever tudo isso ela...!"

  Foi somente sentindo a gravura de cada letra, cada palavra, cada frase transcrita para aquele livro que eu me dei conta do tempo. Que percebi algo realmente doloroso, ao mesmo tempo que recordei de Eugênio e de sua filha.

Ela não era uma incógnita, então...

- Você não viajou no tempo?!

  Eleonor me encarou, como se tentasse desvendar o meu olhar com o seu meio-sorriso, ao mesmo tempo que voltou a desfrutar da água em sua xícara de porcelana.

- Sim, eu não simplesmente acordei nesta destruição como vocês. Eu vi tudo ruir pouco a pouco. De alguma forma eu fui capaz de resistir a aceleração do tempo, e por isso só metade do meu corpo se transformou nesta abominação.

  Eleonor fez uma pausa, estava olhando de forma estranha para o seu braço direito, como se tentasse entende-lo, e então prosseguiu, com um olhar vazio e triste.

- Eu vivo a mais de 234 anos, ou melhor, eu sofro.

Foi então que eu compreendi o título de seu livro.

- Em meio a morte, a selvageria e a dor eu sobrevivi todos estes anos, desde aquele instante em que o mundo brilhou em um ato e desmoronou no outro - vi que seu olho estava prestes a chorar, mas antes que o fizesse, ela o enxugou e por alguns segundos fitou o esqueleto no canto da sala.

  Pensei em perguntar-lhe sobre aquele corpo, mas por algum motivo, as lágrimas de seu lado monstruoso me detiveram, e eu somente continuei a ouvir como Serena e Alexander. Acreditava que talvez o silêncio fosse capaz de afrouxar, mesmo que um pouco, as correntes de seu sofrimento.

- Se bem que, "sobreviver" não é a palavra mais adequada para mim... Que ironia, somente agora eu entendo a dor da imortalidade... - murmurou a mulher com uma única face, prosseguindo um choro de séculos.

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora