Chuva

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  Nada mais fazia sentido. Esta era a única certeza em que ainda podia me agarrar em meio a mentiras e desilusões. A chuva que começou com gotas finas, que apenas faziam cócegas em nossos rostos, tornou-se uma tempestade furiosa. Como se chora-se pelo que aconteceu, ou ainda estava para acontecer.

  Eu estava sentada sobe uma árvore baixa, com suas cascas secas me arranhando, segurando um guarda-chuva antigo. É claro, estava completamente ensopada. Mas não podia sair dali, e de qualquer forma, aquela água não me incomodaria nem se eu fosse feita de papel. Meu corpo congelava por dentro e por fora, mas nada mais importava, nada mais fazia sentido.

  Com a visão embaçada pela chuva enevoada, ainda podia ver Alexander escavar a terra, com o corpo sujo de lama e sangue. O garoto já não mais chorava, não reclamava, não me olhava. Ele não parava nem por um segundo...

  De cavar o túmulo de sua querida irmão sob a chuva.

  Após o assassinato de Serena, Alex não disse mais nada, nem mesmo mais uma palavra. Seguindo-o, nós procuramos por Eleonor, mas nos deparamos com um cenário ainda mais horrível, ainda mais brutal. Uma ânsia de vômito me atacou imediatamente, e Alexander perante ao que restava de nossa amiga, recitou um dos versos de seu livro. Aparentemente, o preferido de sua irmã.

  Eleonor havia sido morta, mas infelizmente não apenas isso. Estirado em uma poça de água e sangue negro, estava metade de uma anomalia. Um destroço horrendo e distorcido, que nos mostrava que a criatura maldita havia devorado sua parte humana, e que nos avisava do pior que estava por vir. No fim, sua única humanidade lhe foi roubada por terceiros, e seu amor nos foi passado para jamais a esquecermos.

  Sem aviso algum, Alexander subiu até uma pequena colina além da cidade e começou a cavar aquele túmulo com as mãos nuas. Durante horas nós ficamos assim. Comigo chorando sob a árvore e o guarda-chuva e ele abrindo a terra como uma passagem para o paraíso. Em seu rosto já não existiam mais sorriso, apenas o vazio.

  Somente após derramar muitas lágrimas e voltar a ter coragem para fitá-lo, que comecei a perceber certas coisas no corpo de Alexander. Primeiro, que em seu pulso havia aquela escrita esquisita que vira em sua irmã, "FAI". Jamais pude vê-la antes, afinal estava sempre com aquele grosso casaco negro. E segundo, que em sua pele haviam inúmeras feridas. Mas não eram recentes, já estavam cicatrizadas.

"Era isso que ele estava escondendo?" pensei.

  Mais do que tudo, eu queria perguntar-lhe. As dúvidas explodiam em minha cabeça, já não aguentava mais aquilo. Precisava saber a verdade, fosse o que fosse. Me levantei da grama com o guarda-chuva, o qual desejara a anos atrás, e corri até ele. Pressão das gotas de chuva pareciam querer me derrubar, mas segui, sem medo de ser levada pelo vento forte que soprava. Parei diante do túmulo e vi que acabara de colocar o corpo de Serena lá, que sorria para nós como que dissesse que acreditava em nós. Alexander notou a minha presença e se levantou. Seu corpo parecia nem perceber a chuva cair, sinal de que o tempo realmente havia parado para ele.

- Acho que já está na hora deu saber a verdade - eu disse, quase gritando, para que minha voz pudesse alcança-lo naquela chuva.

  Alexander me encarava com olhos frios e receosos, com um sorriso invertido esboçado em seu rosto molhado pela chuva e as lágrimas. Ele pareceu pensar por um momento, mas logo virou-se e permaneceu encarando sua irmã.

- Me pergunto se a morte dela foi culpa minha... me pergunto se você tentaria salvá-la se soubesse a verdade... me pergunto se ainda estaria comigo - falou Alexander, quase como um murmúrio.

- Você precisa confiar em mim.

- Nada mais importa! - gritou o garoto, virando-se para mim.

  Alexander tentava desesperadamente limpar as lágrimas de seu rosto, mas o máximo que conseguia era suja-lo com terra e sangue. Me aproximei para ajudá-lo, mas ele se afastou e se ajoelhou perante o túmulo escavado.

- Do que adianta eu te contar agora?! Nosso futuro está fadado a dois destinos, a nossa morte ou a volta no tempo e em ambas você vai se esquecer do que eu disser! - explicou.

- Mesmo assim... pelo menos me diga algo... eu quero te ajudar! - vociferei largando o guarda-chuva e indo até ele.

  Me sentei ao lado de Alexander e ele me olhou espantado. A chuva ardia em minha pela, estava intensa e fria, como balas de chumbo lançadas dos céus. Mas resisti a isso, assim como ele, e sem desviar os olhos lhe disse o que sentia em relação a tudo me acontecera.

- Antes de eu conhecer vocês estava assustada, solitária e sem rumo. Mas vocês me deram uma direção, me deram uma razão ainda maior para continuar...

  Alexander estava sem o que dizer.

- Vocês me deram esperança. Se tornaram meus amigos... me dói demais pensar que nunca mais verei a Serena e a Eleonor... e o mesmo é para minha mãe e Sônia... - segurei meu peito, como se pudesse afagar meu coração estilhaçado - e tenho certeza, de que seria o mesmo se eu perdesse você!

- Lily...

  Eu o abracei, sem dizer nada e ele continuou imóvel, ainda chorando.

- É por isso que eu preciso que me dê uma direção mais uma vez. Eu quero salvar você, a Serena, a Eleonor e todos os outros, mas... eu não posso fazer isso sozinha!!

  Após um longo silêncio. O garoto delicadamente me soltou de seus braços e se levantou. Eu olhei para cima, e vi sua mãe estendida na minha direção, com um sorriso tímido em seu rosto lavado pela chuva.

- ...Então eu te levarei onde tudo aconteceu - disse Alexander.

- Huh? Como assim?

- Lá - indicou Alexander, apontando para um pequeno edifício ao longe.

  Segurei em sua mão para me levantar, e somente então vi do que se tratava.

- Aquele é o laboratório onde o imprevisível aconteceu.

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora