Livro

19 17 0
                                    

  A muito, muito tempo havia uma linda mulher, de cabelos negros e sedosos a qual só podia ser descrita como feliz. Ela era funcionária de uma rentável empresa, então, muito bem sucedida financeiramente. A mulher era casada e vivia um verdadeiro conto de fadas com a pessoa que amava mais do que tudo.

  Mas como se esta fosse a ordem natural das coisas, em um certo dia, tudo desmoronou como um frágil castelo de cartas, roubando o seu ás de copas.

20 de Outubro de 2013

  Primeiro veio o clarão, tão intenso a ponto de cegar, como se as estrelas estivessem caindo do céu. Depois, um choque indescritível preencheu o seu corpo com a dor. Sem poder reagir, ela caiu ao chão com aquela dor insuportável que parecia atacar cada célula de sua existência. E então...

  Talvez tenha sido o medo. Talvez tenha sido o sentimento de confusão. Quem sabe não foi a pura força de vontade. Mas, diante de tal horror a mulher continuou incansavelmente a lutar, não por bravura, apenas para sobreviver. Naquele momento ela sentiu o seu amor afastando-se, e com essa ideia em mente resistiu até o fim.

  Entretanto, nem mesmo Eleonor imaginaria que o seu combustível chamado 'sobrevivência' seria consumido pela chama da 'imortalidade'. Como se roubasse a sua vontade viver...

  Entre tamanha comoção e dor, a mulher viu-se num mar de corpos, dispersos pela rua escurecida pela chuva, os quais não haviam viajado no tempo apenas para o 'outro mundo'.

- Al... Alguém...! - ela tentou chamar, mas sua voz havia desaparecido com o desespero, tornando cada sílaba impronunciável.

  Todos ao seu redor estavam mortos, enquanto alguns parecia se arrastar no chão de forma medonha, isto foi o que ela pensou antes que se desse conta de que aquelas pessoas não era mais humanas. O mundo parecia o mesmo, mas as pessoas haviam mudado. Eleonor percebeu que um de seus olhos estava enxergando em preto e branco, mas ela ainda não havia se dado conta do ocorrido.

  A chuva, incapaz de levar os corpos de almas roubadas e de lavar os corações feridos, continuou a cair. E foi em uma de suas poças na calçada que a mulher, após o término da dor, enfim pôde ver o seu novo reflexo. As águas não poderiam rachar como espelhos, por isso, elas simplesmente ondularam com as lágrimas de Eleonor.

  Confusa, perdida e desesperada. A mulher correu pela chuva, por entre os cadáveres, em busca de um respingo de desconforto. De um ombro para chorar. Por ainda não estar acostumada ao novo corpo, demorou um bom tempo para chegar ao local, o velho trailer de seu marido.

  Esperançosa, ela entrou no veículo e lá avistou o seu amor, encolhido no canto do cômodo com uma faca nas mãos, tremendo sem parar e tentando esconder o rosto ao ver a sombra no chão.

- Me deixe em paz! Por favor! - gritava o homem, balançando sem jeito a sua arma afiada, golpeando o ar.

- S-Sou eu - disse a mulher, com grande esforço enquanto esboçava o que deveria ser um sorriso - Eleonor.

Ele lhe olhou incrédulo, completamente horrorizado.

- O que... aconteceu com você...? Você virou um monstro.

  Eleonor tentou se aproximar, buscando o calor de um abraço naquele dia desgraçado, mas em vez de um gesto fraterno ela recebeu uma repulsa de nojo.

- Não se aproxime de mim!! - voltou a gritar o cônjuge, apontando-lhe a faca.

- Telh, sou eu. Eleonor - falou a mulher de forma amável, desejando convencer o seu marido de que não representava perigo algum - Aconteceram alguma coisa comigo mas... ainda sou a mesma...

  Com um olhar distante, Telh recuou a arma, mas antes que a meia-anomalía se aproxima-se ele a pressionou contra o próprio pescoço. Ele tremia ainda mais, e o suor de seu rosto estava misturado ao sangue de sua testa, o qual só então Eleonor se deu conta.

- Oque diabos está acontecendo... primeiro veio aquela dor maldita, como se meu corpo estivesse sendo retorcido... - começou a contar Telh entre soluços - Depois vi que estavam todos mortos...

- Telh... Eu---

- E DEPOIS! - vociferou o homem - Apareceram esses monstros! Eles... quase me comeram vivo, dei sorte por escapar com só alguns cortes... e agora... você está nesta forma horrorosa...

Ele pressionou ainda mais a faca, deixando um gota de sangue escorrer.

- Telh!!

- EU NÃO QUERO VER MAIS NADA!!

  Com o último grito e o derramar do sangue, o trailer se voltou ao silêncio, levando embora o único homem que resistira a anomalia do tempo sem ser um incógnita. Um fim trágico para alguém de tamanha resistência.

  A mulher, apaixonada por alguém que já não habitava mais este mundo, jamais deixou aquele trailer, e nem mesmo removeu o corpo de Telh daquele lugar. Talvez, porque ela ainda acreditasse ou tentava acreditar que um dia aquele clarão voltaria, e ele estaria ali, vivo, ao seu lado.

  Perdida na solidão e escondendo-se dos monstros, ela começou a escrever para não enlouquecer naquele mundo retorcido. E em um de seus livros, o que eu segurava em minhas mãos apesar do peso, ela relatou tudo o que lhe acontecera desde o dia que tudo mudou. Foi lendo o livro "Sofrimento Palpável" que eu descobri a triste história de Eleonor Stanford.

  Nem mesmo o tempo ou a morte foram capazes de apagar o amor daquela mulher, cuja esperança depositava em seus versos.

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora