Anomalia

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  Meus pensamentos estavam embaralhados, não era nem mesmo capaz de discernir a ficção da verdade. Quando meus olhos voltaram a encarar a escuridão da fábrica, agora completamente escura o que indicava a chegada da noite, inconscientemente minhas memórias me acertaram. Com a cabeça latejando, as figuras de seres distorcidos me deram um choque de realidade, o qual despertou-me por inteira.

- Não vejo nada... - murmurei ao perceber que nada enxergava.

  Em pleno breu, procurei por sinais de localização. Minhas pernas ainda sentiam o sangue no chão, minhas costas o frio do maquinário. Eu ainda estava no mesmo lugar, mas essa informação não me servia de nada, afinal não sabia como sair dali mesmo às claras.

"Será que... ainda há monstros aqui?" Eu me peguei pensando isso ao sentir o cheiro desagradável de cadáveres.

  Levantei-me com dificuldade, me escorando na máquina metálica de grande porte, com dores nas costas devido as condições em que estava. Antes que eu me lançasse as cegas, correndo o risco de encontrar outra criatura grotesca no escuro, tive o que chamam de 'idéia de gênio'.

- Ah, o celular da mãe! - quase gritei de alegria - Posso usar a luz dele pra me guiar!

   Retirei o velho celular de meu bolso e o religuei, ainda possuía 70% de bateria, o suficiente para eu encontrar a saída daquele labirinto das trevas. Com o 'brilho' no máximo, comecei a distinguir as formas de objetos e a deduzir os espaços a percorrer. A luz do celular, mesmo em seu limite, era fraca se comparada a lanterna (agora perdida na escuridão) pois só clareava alguns centímetros, por isso muitas vezes tive de aproximar o aparelho para me certificar do que se tratava.

  Quando eu acreditava já estar mais perdida do que antes, avistei um pequeno brilho pelo canto de meus olhos, e ao encarar melhor vi que se tratava da iluminação vinda de uma sala. A porta estava entreaberta, e se encontrava no final de um estreito corredor. Tinha consciência de que a saída não era por aquela direção, mas em contrapartida duas coisas me chamaram a atenção.

"Por que há luz naquela sala? E isto não quer dizer que há alguém lá?"

  Minhas pernas se moveram sozinhas, como o instinto de um animal sedento de fome, e minhas dores instantaneamente foram curadas pelo esquecimento. Quando cheguei à porta, me deparei com a fonte da luz, simples mas eficaz, um velho lampião cujas chamas bailavam em contraste com o céu sem estrelas as suas costas, em uma grande janela que percorria toda a parede.

  Caminhei até o lampião, observando-o sem parar, pois nunca havia visto um de perto. Mas foi apenas no oitavo passo dentro da sala que eu me dei conta de sua presença...

  Aquele ruído familiar e sua respiração lenta chegaram aos meus ouvidos, e com um girar rápido de meu corpo, agitando os cabelos, eu me deparei com a fera mais uma vez.

  A criatura disforme estava sentada no centro da sala, como um macaco, me encarando com seus olhos negros. Seu corpo estava tão imóvel que cheguei a me perguntar se estava dormindo, mas não. Por algum motivo, desta vez, eu não estava com medo do monstro, como se eu já houvesse me acostumado a ele. Como se ele já fosse natural para mim. E curiosamente, ele também não parecia interessado em me atacar.

  Ignorando o lampião, permaneci de pé ali, analisando aquela aberração como se pudesse ler seus movimentos.

"Afinal de contas, oque são vocês?" Eu pensei, após recordar de todos os estranhos encontros que eu havia tido.

  Aquilo não era um sonho, então oque eram estes monstros? Até o momento, com a ajuda do celular de minha mãe, eu já sabia que estava no futuro, em 2307. Mas, mesmo admitindo uma viagem no tempo como algo cabível, de onde diabos vieram estas 'coisas'? Eu não sabia explicar.

  Seres disformes, devoradores de pessoas e alimentos variados, e sabia lá o que mais. Oque eram? De onde vieram? Como surgiram?

  De repente, uma breve lembrança me alarmou. "Ajude-me", esta palavra ecoou infinitamente pela minha cabeça e, sem perceber, uma indagação saiu de meus lábios dirigindo-se ao monstro:

- O que... é você...?

  Obviamente, a criatura não respondeu. "Eles não podem falar" concluí. Porém, o monstro distorcido ergueu seu braço em minha direção, como um sinal, e só então reparei que havia um objeto em sua mão. Era um Smartphone, conectado à um headphone que se encontrava no chão.

  O ser parecia desejar que eu pegasse o celular de sua mão, ou foi apenas o que deduzi, então eu o fiz. Com o aparelho em mãos, olhei para a tela e no visor estava uma foto em tela cheia.

  Na foto haviam duas pessoas. Um homem de meia-idade com uma roupa formal, terno e gravata, e uma menininha de uns 5 anos usando um belo vestidinho branco e uma tiara, no colo, provavelmente, de seu pai. Os dois sorriam de forma meiga e feliz, uma cena de família tão linda que também me dava vontade de sorrir de tão aconchegante. Talvez, porque me lembrava do meu pai.

  Mas foi encarando os olhos negros do monstro, e percebendo que um líquido escuro escorria de seus olhos, que eu me dei conta................

O celular caiu de minha mão.

Minhas pernas bambearam, e eu caí de joelhos, de frente para o ser.

  Naquele momento, o mundo inteiro pareceu se despedaçar como fragmentos de um quebra-cabeças idealizado.

- N-N-Na foto... é você... n-não é...? - eu perguntei a criatura com uma voz chorosa, e ele concordou com a cabeça levemente, como se sentisse o peso desta dura verdade.

  Eu toquei o rosto da fera com meus dedos gelados, e no calor de sua pele asquerosa eu senti um respingo de humanidade. Suas lágrimas eram a prova, ele era o pai da menininha e todos os monstros eram humanos. Esta era a terrível verdade por trás daqueles que eu chamava de monstro, fera, ou criatura, eles não passavam de seres humanos. Eles eram anomalias.

  Com uma dor maçante em meu peito, como se houvessem apunhalado meu coração, além de um turbilhão de lágrimas descendo pelo meu rosto, eu perguntei entre soluços:

- A sua filha... e-ela está morta, não está?

  Meus braços envolveram o homem, mesmo que incapazes de aquecê-lo nesta triste chuva de palavras, e com o rosto apoiado contra o seu ombro sujo de sangue, eu senti o balançar de sua cabeça sinalizando que sim.

  Junto ao 'monstro' eu me pus a gritar, junto ao 'monstro' eu me pus a chorar. E com o arder dos pulmões e o pesar da responsabilidade, eu prometi, eu me comprometi, jurei por minha vida.

- Eu juro... EU JURO QUE VOU TE SALVAR!! - e com estas palavras, todo o meu corpo estremeceu, lavando todos os males - EU VOU SALVAR VOCÊ, A SUA FILHA... VOU SALVAR ESTE MUNDO!!!

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora