Capítulo cinco - Tenlie

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No carro, a caminho da cerca, meu pai explica o que estamos fazendo. Peter queria ser uma pessoa melhor e tomou o soro da memória. Muitos podem pensar que ele fez a escolha mais fácil, mas não consigo imaginar o quão difícil deve ser escolher  esquecer sua vida inteira e a todos que você ama. Se odiar tanto assim. 

Agora estamos indo encontrá-lo porque ele está voltando para Chicago, com sua esposa e um filho que tem mais ou menos a minha idade. Ele ainda sabe pouco de sua antiga vida, mas quando decidiu voltar para a cidade, entrou em contato com meu pai.  Ele apenas sabe que se conheciam, chamou meu pai por reconhecê-lo nas notícias. Meu pai é o principal assessor da nossa prefeita, Johanna. 

                                                                          * * *

Estou de pé, ao lado do meu pai, sorrindo e balançando a cabeça enquanto escuto Peter, sua esposa e meu pai conversarem. De tempos em tempos Peter me encara. Talvez ele me ache familiar por eu ser parecida com a minha mãe. Pelo menos, é o que me dizem. Meu rosto tem o mesmo formato que o dela e meus olhos puxaram mais o azul dos dela que o dos olhos do meu pai. Mas sou mais alta do que ela era e meu cabelo é escuro como o do meu pai. Quando estou com o tio Caleb, não parecemos ser da mesma família, o que é engraçado considerando que minha família é toda formada por amigos dos meus pais e ele é um dos poucos que tem meu sangue. 

Peter continua me olhando, minha mãe deve ter sido mais importante para ele do que eu imaginava. O filho dele tem quinze anos, sou um pouco mais velha. Ele está parado um pouco afastado de nós e não demonstra interesse nenhum em estar aqui. Decido ir até ele, afinal, meu pai me trouxe apenas para recepcioná-lo. 

Dou o primeiro passo, ele olha para mim tão rápido quanto desvia o olhar. Não sei seu nome e ele não parece interessado em falar. É um pouco mais baixo que eu, seu cabelo é escuro e liso como o de Peter e seus olhos são verdes. Finge que não me viu. Não sei o que está tentando, e ainda não consegui identificar algum traço de qualquer facção nele. Talvez Erudição pela antipatia, mas meu tio e Cara são muito simpáticos. E, embora pareça estar forçando a marra da Audácia, fingir que não vê uma pessoa andando em sua direção não é nada corajoso. Paro de frente para ele e o encaro por alguns segundos. Sou audaciosa o bastante para um garoto desses. 

- Então, - tento começar um diálogo - bem vindo a Chicago. Sou a Tenlie, filha do Tobias. 

- Tenlie? - pergunta, finalmente me dando atenção, mas seu olhar é debochado. 

Detesto ter que explicar meu nome para as pessoas. O significado é legal mas tosco ao mesmo tempo, algum dos meus mil tios podia ter tentando fazer meu pai mudar de ideia. Ele podia ter me poupado disso. Mas sei que ele faz as coisas por saber que eu aguento o tranco.

Reviro os olhos e começo a explicação que já memorizei há anos.

- "Ten" de dez. Meus pais eram da Audácia. Minha mãe tinha seis medos e meu pai tinha quatro. Dez. E "lie" é do final do nome da minha avó materna, Natalie. Tenlie. Meu pai não é muito bom com criatividade. 

Não é bom com criatividade mas sabe impressionar. Ter sete medos era algo muito raro na Audácia, minha mãe tinha mas venceu um deles, ficando com seis. E meu pai, bem ele é o Quatro. Já minha avó, carregava uma força diferente, que poucos sabem. Ela viveu em todos os lugares mais emocionantes. Na cidade do lado de fora da cerca, Margem, Departamento, Audácia e Abnegação. Sempre sendo corajosa, bondosa, altruísta e inteligente. Não era exatamente honesta porque tinha uma missão e tinha segredos que precisava esconder para ajudar as pessoas. 

                                                                           * * *

Meu pai me chama para jantar, estou lendo um livro de história que Cara me deu. Gosto de ler quando estou em casa, deve ser a única coisa que me faz ficar parada. Geralmente, sou bem agitada. Sento à mesa e espero que ele me sirva, como sempre faz. Não sei porquê, mas não me incomoda. 

- Lendo sobre o que? 

- História. Sabia que antes da Guerra da Pureza o mundo teve outras duas grandes guerras? Tipo, entre o mundo todo. - ele me olha desconfiado com minha animação. 

- Conseguimos achar seu momento mais Erudição do dia... só falta Franqueza. 

- Quem sabe outro dia. - falo como se fosse piada, esperando que ele acredite. Procuro mudar de assunto. - Como foi com Peter?

- Estranho, mas tranquilo. Vão morar em uma das casas do antigo setor da Abnegação. 

Nos olhamos, os dois com o mesmo sorriso no rosto. A vida é mesmo muito irônica. 

- Então... dezesseis anos. Hoje teria sido seu teste de aptidão. Qual sua facção? 

- Bem... - seria um bom momento para contar. Ou um péssimo momento. - Não somos autorizados a revelar nossos resultados. E o dia da escolha seria amanhã. 

Nasci no dia da escolha. É engraçado e irritante ao mesmo tempo. Sei que outras coisas importantes para meu pai aconteceram esse dia, e fico feliz por ser a melhor delas. 

- Queria pedir uma coisa, um presente. - ele me olha com um sorriso curioso e os olhos estreitos. Uma foto dela, é só isso. Sei que membros da Abnegação não tiravam fotos, mas existem fotos dela. Até mesmo alguma imagem das câmeras de segurança da Audácia, o Departamento tem tudo registrado. Só quero vê-la, saber como ela era. Mas falar isso seria doloroso para nós dois, então espero mais um pouco. Talvez quando eu fizer dezoito anos. - O bolo de chocolate da Audácia. Sei que você conseguiria a receita com alguém, Quatro

Ele ri ao ouvir seu apelido, levanta-se levando os pratos para cozinha. 

- Talvez. - ele diz, da porta, e tenho certeza que é um sim. - Amanhã, Zeke, Shauna, Christina, Amah, George e Cara vêm almoçar aqui. À tarde, você vai ver Caleb, e à noite Evelyn virá jantar conosco. Um aniversário cheio! 

- Gosto de ver como vocês organizaram o meu aniversário sem nem incluir a única coisa que eu queria. - reclamo, mas estou feliz de qualquer forma. Gosto da minha família bagunçada e grande. Amigos da minha mãe, conheceram ela e me conhecem. Como uma ponte que liga dois lugares, afastados por um rio. 

- E depois de amanhã - continua meu pai, sentando-se a minha frente outra vez. Ele parece mais preocupado em me olhar do que em estar perto. Estar próximo é quase um egoísmo, olhar é um ato de cuidado e proteção. E ele é pai, criado na Abnegação. Seria impossível não cuidar de mim, o que pode vir a ser um problema. - Seu passeio dos sonhos com seus amigos. Ah, o filho do Peter vai junto. 

Não acredito que ele deixou. Não acredito, não acredito! Quero chorar e ao mesmo tempo sair pulando pela sala. Dou um salto, corro ao redor da mesa e o abraço. Nós merecemos esse egoísmo, que agora também é gratidão a bondade dele. 

- Muito obrigada! Eu te amo! Ah! Não acredito! Obrigada! 

Vou dormir com a certeza de que tenho o melhor pai do mundo e de que amanhã terei o melhor aniversário de todos. 

DescendenteOnde histórias criam vida. Descubra agora