Capítulo sete - Tenlie

65 6 0
                                    

Pela primeira vez em muito tempo, talvez na vida toda, acordo antes do meu pai. Corro para o seu quarto e me jogo na sua cama, abraçando-o. Ele não se assusta, apenas ri e joga o braço por cima de mim. Sei que está nervoso, provavelmente gostaria de viver esse momento comigo, mas acho que é melhor eu ter essa experiência sozinha. Bem, eu e meus amigos.

Estamos deitados da mesma maneira que na manhã de ontem, lado a lado encarando o teto, mas agora na sua cama, olhando pra o seu teto branco e sem graça. Ele me fala algumas coisas, me dá orientações enquanto gesticula. Está sem camisa então consigo ver partes da sua tatuagem quando ele levanta o braço, a tatuagem que entregava que ele era divergente. Quando contei a ele que eu também sou, achei que ficaria brabo. Ser divergente não importa mais, nunca devia ter importado. Mas foi importante na história dos meus pais, então eu queria saber. Ele apenas sorriu, me abraçou e disse que eu poderia fazer uma tatuagem. Pena que não tenho ideia do que fazer. 

- Sejam corajosos, sem ser estúpidos. - ele alerta e eu apenas sorrio. Sei que ele confia em mim e confia no que ele mesmo me ensinou. Ficarei bem, espero que saiba disso. 

*  *  *

Conforme nos aproximamos, vejo meus amigos me esperando no ponto em que combinamos, perto dos trilhos. Não nos vemos com muita frequência desde que a maioria de nós acabou a escola, mas estamos sempre juntos nos momentos importantes. Há uma conexão forte entre todos nós. Somos filhos de sobreviventes e nossos nomes carregam as história deles. 

Victória é minha melhor amiga, Amah e George a adotaram quando ela tinha cinco anos, a mesma idade que eu tinha na época, então crescemos juntas. Seu nome é uma homenagem a Tori Wu, irmã de George. Ela sorri ao me ver descer do carro. Ao seu lado está o filho de Peter, Frank. Não sei o que o traz aqui mas acho que fará parte do grupo agora. 

Meu pai me abraça forte e depois apoia suas mãos em meus ombros. Sorrio para tentar tranquilizá-lo. 

- Seja boa. -ele diz e aceno com a cabeça. 

A maioria dos jovens acharia bobo um pai falar para sua filha algo como isso, mas meus amigos respeitam meu pai, o Quatro, então ficam quietos. Sei o que ele quer dizer. Não é algo como "seja boazinha", "se comporte". Não. Seja boa, uma boa pessoa. Seja corajosa, não estúpida. Aproveite a sua aventura, vá atrás do que procura, acompanhe e ajude seus amigos a fazer o mesmo. Seja tudo o que as facções queriam que fôssemos, mas tudo ao mesmo tempo. Serei boa. 

Mas talvez um pouquinho estúpida. 

- As facções acabaram, não precisa ficar usando preto para se fantasiar de Audácia. - diz Fernando, aproximando-se de mim. 

Ele é filho de Cara, seu nome é homenagem a algum amigo da Erudição que também foi aliado dos nossos pais. Ele é um ano mais velho que eu, acha que por isso pode ficar me enfrentando toda hora. Ele é um perfeito membro da Erudição, mas sempre foi dedo duro, como alguém da Franqueza poderia ser. Ficava falando para o meu pai tudo o que eu fazia quando erámos pequenos. Meu pai o escutava torcendo a boca, segurando o sorriso. 

Atrás de Fernando, está Marlynn, o mais novo entre nós. Ele é filho de Shauna, tem apenas doze anos mas está sempre pronto para a aventura. Nós três somos encarregados de protegê-lo da sua própria inconsequência. Sorrio para ele e ele vem me abraçar. 

- Se as facções já acabaram, preto é apenas uma cor e não a cor da Audácia, não acha? - respondo Fernando já me afastando. - Preparados? 

O trem se aproxima, nós cinco esperamos ansiosos. Sei que eu e Marlynn somos os únicos que já fizeram isso então ele vai primeiro, para mostrar aos outros como pular, e eu por último, caso alguém precise de ajuda. 

Agora os trens param, mas ainda é possível abrir as portas por fora enquanto eles andam, então aproveitamos para fazer o mesmo que nossos pais faziam, na época da Audácia. Marlynn começa a correr e todos o seguimos. Não demora muito até que ele pule e se agarre a porta, jogando seu corpo para dentro. Frank se empolga e faz o mesmo, sem muita dificuldade. Victória o segue, Fernando precisa de ajuda para puxar o corpo para dentro do vagão. Salto e me seguro nas barras do lado de fora do trem, apoiando os pés e sentindo o vento cada vez mais forte. 

Estamos indo para o complexo da Audácia, pela primeira vez. O lugar está fechado há vinte anos ou mais, foi considerado perigoso para ser habitado por várias famílias, também seria um incentivo a manter práticas, não muito positivas, de uma das facções. Agora é o lugar onde eu e meus amigos vamos conhecer as memórias que levamos em nossos nomes.  

- Vou entrar pulando. - anuncio sem um pingo de dúvida, Marlynn sorri balançando a cabeça. Ele também vai. 

- O que? Não, de jeito nenhum, Tenlie! - Fernando começa uma discussão que obviamente vai perder. 

- Você não tem nada a ver com o que faço. Eu vou. Vocês não precisam ir, podem passar pela cerca e entrar nos prédios, mas eu vou pular. Como meus pais fizeram. Como os seus pais e a Tori fizeram, Victória. - volto-me para Fernando. - Como o seu tio fez. 

Victória sorri para mim e concorda, Fernando também, apesar da raiva. Já sei o que Marlynn decidiu então volto-me para Frank. Ele não é nada simpático, mas sorri. 

- Meu pai pulou, em algum momento. Vou pular também. 

O trem não para perto do complexo então teremos que saltar. Eles vão pular antes de os trilhos do trem começarem a subir, passar pela cerca e subir até o terraço do prédio. Mas eu não. Eu vou seguir no trem até que ele se afaste do chão e vou saltar para o terraço. Eles só não sabem disso. 

Nos aproximamos de um gramado e eles saltam do trem, Fernando, Marlynn e Victória. Frank se aproxima de mim. 

- Pode ir na minha frente. - digo, tentando disfarçar. 

- Você não vai descer. - ele fala como se estivesse me decifrando, mas isso já era esperado vindo de mim. - E eu também não vou. 

- Olha aqui, garoto. - ele recém chegou em Chicago, talvez nunca tenha entrado em um trem, vai acabar me dando trabalho. - Eu tenho um objetivo e não quero ninguém me atrapalhando. 

- Eu também tenho. - ele está irritado, mas sua voz soa triste. - Meu pai fez tudo isso e depois esqueceu. Vou fazer tudo exatamente como ele fez. Se ele nunca vai saber como foi, eu vou. 

Sei do que ele está falando e o entendo. Queremos reviver a história dos nossos pais. Eu por não ter minha mãe, ele por saber que seu pai não tem uma parte de si mesmo. 

O trem já está a quase oito metros do chão, ponho a cabeça para fora e vejo o prédio se aproximando. Meus amigos correm com raiva de mim em algum lugar abaixo de nós. 

- Ta... o vão é bem maior do que eu pensava. - digo da forma menos assustadora que consigo. 

Não tenho medo de altura mas a ideia de me espatifar no chão, após meu pai ter dito para eu ser corajosa sem ser estúpida, realmente não me agrada. Frank olha para o prédio e depois para mim. Acenamos com a cabeça ao mesmo tempo. Damos alguns passos para trás, pegando impulso. 

- Pronta? - ele pergunta. 

Balanço a cabeça negativamente, dando os primeiros passos, e salto. Sinto o vento no meu rosto e o frio na barriga. Caio de joelhos, mas não me incomodo. Estou rindo e meu corpo todo parece estar elétrico. Frank está deitado de barrigada para cima ao meu lado, rindo com as mãos no rosto. 

DescendenteOnde histórias criam vida. Descubra agora