Capítulo oito - Tenlie

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Sou arrancada do meu estado de alegria com o som estrondoso da porta se abrindo. 

- Que ideia foi essa?! - Fernando está gritando, com o rosto todo vermelho. 

Ele é o único de nós que não foi criado por alguém da Audácia, talvez por isso seja o chato do grupo. 

- Se você é mesmo esperto, sabe que era óbvio que eu ia fazer isso. 

Ele tenta protestar, mas desiste. Ele sabe que estou certa, tenho meu limites e, às vezes, vou testá-los. Eu sabia que era capaz de saltar, já treinei isso, mas em lugares não tão longes do chão. Não fui estúpida. Frank foi. Ele, com certeza, não teve qualquer treinamento para isso, ele é como um iniciando. Hoje, somos seus instrutores. 

Caminhamos até o outro lado do terraço, o prédio é alto e o buraco no concreto está lá. O céu está claro, não tem muito vento. 

Alguém precisa ser o primeiro a pular e serei eu. Como minha mãe foi. Serei a primeira a pular e também a que recebe os outros, como meu pai era. Mas isso significa que algum deles será o que fica por último, para o caso de alguém precisar de ajuda. Marlynn é corajoso, mas é pequeno e não tem tanta força, não para lidar com um de nós, somos todos bem mais altos que ele. Fernando é, geralmente, o que precisa de ajuda. Frank recém chegou mas não parece incomodado em ficar para trás e ajudar. Ele e Victória serão os últimos. 

Aproximo-me da beirada, apoio minhas mãos na mureta e olho para baixo. Me pergunto se Tris tocou nessa mesma parte da mureta, aperto mais minhas mãos contra os tijolos. Subo na mureta, não tenho dificuldades para me equilibrar. Olho para trás, meus amigos estão sorrindo, sabem como isso é importante para mim. Olho para o céu, há quem diga que ela está lá, me observando. Nesse momento, espero que sim. Olho um pouco ao redor, para o chão e os outros prédios, vendo as mesmas coisas que ela pode ter visto. Meu olhos estão marejados. Respiro fundo e salto. 

Sinto o vento forte balançando minhas roupas, é intenso mas logo para. Meu corpo bate na rede e deixo que ela me segure, da mesma forma que segurou minha mãe um dia. Fico deitada ali, chorando baixinho, passando os dedos pelas amarras da rede. Olho para o lado e ali está, a plataforma onde meus pais se conheceram, se tocaram e conversaram pela primeira vez. Onde Quatro deu a chance de Beatrice se tornar Tris. 

Arrasto meu corpo até a beirada da rede, antes de me soltar, seguro apertado as cordas. Pego impulso e caio de pé na plataforma. Olho ao meu redor, é tudo um pouco escuro, mas é lindo. A atmosfera parece eufórica, não sei se é pelo que estou sentindo ou se é a energia natural da Audácia que ainda vive aqui dentro. Seco as lágrimas e grito para meus amigos. O próximo a cair na rede é Fernando e estico minha mão para que ele possa descer. Logo depois, Frank salta. Com um pulinho, chega a plataforma, olhando ao seu redor completamente maravilhado. Victória salta com Marlynn nos braços, ele é pequeno demais, talvez não conseguisse alcançar o buraco no chão sozinho. Ela está pálida, apavorada, mas sorridente. Fica deitada na rede, com Marlynn nos braços, por alguns segundos. Ele dá gargalhadas. Se arrastam para fora da rede, eu o seguro e os meninos a ajudam. Meu pai está errado, ela não iria para a Amizade, iria para a Abnegação. Sua coragem vem da chance de fazer algo pelos outros. Me lanço sobre ela e a envolvo em um abraço, chorando novamente, mas rindo ao mesmo tempo. Estamos dentro do complexo da Audácia. 

Eles descem da plataforma, gostaria de ser a primeira, mas quero ficar mais um pouquinho no lugar em que meus pais se conheceram. Minha mãe foi da última turma de iniciandos, depois disso, nenhum outro grupo pulou nessa rede. Até hoje. Respiro fundo e desço as escadas, as que meu pai subiu para ajudar minha mãe e dizer "Bem vinda a Audácia". Me sinto em casa, apesar de estar em uma caverna vazia, habitada apenas por mofo. 

- Para onde vamos primeiro? - pergunta Fernando. 

- Dormitório dos transferidos! - respondemos eu e Frank ao mesmo tempo. Não sei se ele sabe o que seu pai fez dentro daquele quarto, mas não vou contar. Não tem porquê. 

Corremos animados pelos corredores, iluminado pelas lanternas que trouxemos, lembro todas as explicações de Shauna e Zeke sobre o complexo. O quarto é cheio de camas, mas não tem nada de especial. Sei qual era a cama da minha mãe, sento-me nela, parte de mim espera encontrar algo, talvez sentir seu cheiro, meu pai disse que ela cheirava a sabonete e maçã. Não consigo me segurar e volto a chorar, meus amigos sentam-se ao meu lado e aos meus pés, me envolvendo em um grande e confuso abraço. Sou muito grata a minha família estranha. 

Acalmo-me e exploramos o dormitório, mostro a Frank a cama de Peter, também está vazia, mas acho que no caso dele isso é um alívio. 

Corremos até os apartamentos, Fernando acompanha Marlynn ao apartamento onde Shauna e Zeke moraram por um tempo, Victória vai atrás do estúdio de tatuagem, que Amah disse onde ficava, eu e Frank vamos para o apartamento que era do meu pai. Abro a porta e não vejo nada demais, como era de se esperar. Meu pai não decorava o apartamento, não pretendia viver nele por muito tempo. Jogo-me na cama, sei que meus pais já estiveram ali juntos. Está empoeirada então logo levanto. As luzes acendem, significa que Fernando achou a sala dos geradores. Ouço passos acelerados, eu e Frank saímos e encontramos Marlynn. 

- A Vicky, ela encontrou muitas coisas. - diz ofegante. 

- No estúdio? - pergunta Frank. 

- O apartamento de Tori era no estúdio. - explico. 

Começamos a correr, quando chegamos, Victória está  chorando, agachada com papéis na mão. Fernando tenta confortá-la com as mãos em seus ombros. Ela olha para mim e vira uma das folhas, são desenhos. Recolhemos todos os desenhos que encontramos e ela põe em sua mochila. Dou um abraço forte nela, me afasto mantendo suas mãos nas minhas. 

- Sinto muito ter que dizer isso, - começo, tentando animá-la - mas Tori desenhava melhor que você. - ela solta uma risada curta. - Só um pouquinho melhor.  

Vamos para o refeitório, sentamo-nos na mesa onde nossos familiares costumavam almoçar juntos. Minha mãe, Will, Uriah, Marlene e Lynn. Sei que eles se divertiam aqui, e agora trazemos a alegria de volta. Olho em volta, sei qual é a mesa em que minha mãe sentou ao lado de meu pai no seu primeiro dia, sei em qual mesa Peter sentava, mas prefiro manter o foco aqui. No nosso pequeno clubinho. Marlynn levanta-se em um salto e aponta para cima. 

- Vejam! - não levo sua empolgação a sério até que percebo para onde ele aponta. - É o quadro dos aprovados na Audácia, não é?

Meus olhos se enchem de lágrimas ao ver que ainda está ali, e estou sentada no mesmo lugar que minha mãe estava quando o viu. Leio seus nomes. 

1. Tris
2. Uriah
3. Lynn
4. Marlene
5. Peter
6. Will
7. Christina

- Vamos levar esse quadro para casa.

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