Descendente

Capítulo quatro - Tenlie

Dezesseis anos depois. 

Acordo com um travesseiro sendo atirado na minha cabeça.

- E aquela história de ser amigável? Existem jeitos muito mais amigáveis de se acordar alguém!

Sento-me na cama e o vejo sorrindo para mim, segurando uma risada, na verdade. Meu pai está encostado no batente da porta do meu quarto, encarando-me. O encaro de volta, não tenho motivos para temê-lo. Ele é bonito, bem mais bonito que os outros pais. Ele é um pai jovem, talvez isso ajude. E mantém o físico de um membro da Audácia. Seus olhos azuis brilham, ele cansa de me encarar e sorri. Desisto de fingir que estou irritada, levanto-me e corro pra seus braços. 

- Bom dia. - digo alegremente. 

- Bom dia, amiguinha! - ele pega no meu pé, dizendo que forço a marra da Audácia mas que sou, claramente, alguém da Amizade. De vez em quando, deixo uma das plantas que decoram nosso apartamento morrer, para ele não insistir que essa seria minha facção. 

Solto-me do seu abraço e corro, jogando-me na cama e resmungando. Ele puxa meus pés e me arrasta. 

- Só me dê três minutos! Seu amigo não vai morrer se você demorar um pouco. - reclamo com minha falsa raiva. Também não gosto de deixar os outros esperando, mas gosto bastante de dormir. 

- Dessa vez é diferente, não sei se é um amigo. 

- Opa! Como assim? - em um salto, sento-me na cama. Ele dá as costas e vai para a sala. 

Dormi com uma camiseta cinza escura, posso tranquilamente usá-la para sair, então agarro uma calça preta que esta sobre uma cadeira e o sigo, vestindo-me desajeitada e apressadamente. 

- Senhor, Tobias! Olhe para mim, aqui! Sua filhinha linda! - sigo-o pela cozinha enquanto ele ri e finge não me ver. 

- Está se achando demais! Esse comportamento não seria aceito na Abnegação!

É uma piada, mas fico nervosa. Sei que as facções não existem mais, mas fazemos isso. Usamos elas como um guia. Cada facção pregava uma filosofia e contemplava uma qualidade; como a Audácia com a coragem, Amizade com a bondade. Mas meu pai acredita que devemos ser tudo junto, minha mãe também acreditava nisso. Ele disse que ela era exatamente assim, sem se esforçar. Eles faziam testes para saber qual qualidade se destacava em cada pessoa e o teste da minha mãe disse que ela era apta para três facções, mas não para a Amizade nem para Franqueza. Meu pai disse que o teste dela estava certo, mas depois que eles se conheceram, chegaram em um ponto em que concordaram nunca mais mentir ou guardar segredos. E foi ela quem insistiu para que buscassem a verdade sobre Chicago. Ela acreditava no poder da verdade, ela era honesta. E era um pessoa absurdamente gentil e bondosa. Mas, às vezes, outras coisas pesam mais. Nem todos merecem essa bondade. 

Me pergunto se sou alguém que mereceria sua bondade, acho que sim. Será que sei ver quem merece a minha bondade? 

- Estou brincando! Você é a garota mais careta que conheço! - careta, gíria da Audácia pra os membros da Abnegação. Ele está tentando me animar, notou que me chateou com a brincadeira. Ele sempre nota tudo. Ou talvez eu seja da Franqueza demais. - É a garota mais linda que conheço também. 

Ele beija o topo da minha cabeça e volta para a sala. Pego algo para comer e sento-me de frente para ele. 

- Então, não sabe se é um amigo? - pergunto desconfiada, quase em tom de piada. - Quem é o cara? 

- Peter. Mais alguma pergunta, senhorita patrulheira?

Quase caio para trás ao ouvir esse nome. Nunca o vi, mas já ouvi coisas sobre ele. Meu pai não gostava dele, minha mãe menos ainda. Mas algo aconteceu e todos decidiram ajudá-lo, de alguma forma. Christina é a que mais fala dele, não é frequente, mas é o suficiente para eu saber que ele é importante na história dos meus pais. 

- Em um período de quinze minutos você já me colocou em três facções diferentes! Está afiado hoje, pai. 

- Parece que temos uma divergente aqui. 

Ele sorri e sai da mesa. Não sei se ele nota, mas me sinto congelada. Ser divergente não é mais algo que importe, mas sei que ele se importaria se soubesse.