Não havia como negar que Calendra não estava propensa a fazer o que Pavetta lhe pedira. Ela já se encontrava na mesma posição há bastante tempo, sentada encurvada em torno de si mesma, os lábios entreabertos enquanto sussurrava palavras desconexas. Se Pavetta nunca tivesse presenciado uma sessão de vidência na vida, teria ficado apavorada com o vazio nos olhos de Calendra, a palidez mórbida de sua pele, as mãos sofrendo espasmos, o corpo convulsionando e os grunhidos emitidos por sua garganta. Tinha o aspecto completamente alheio ao que estava acontecendo ao seu redor, presa em um mundo ao qual somente ela tinha acesso.
Preocupada, Pavetta acompanhou o movimento de seus pulmões, conferindo se a jovem respirava, o que parecia fazer, mesmo que de modo descompassado. Ainda que tivesse tentado movê-la, não fora capaz de afastá-la mais que alguns centímetros de lugar; por isso, aguardava aflita enquanto Ishtar voava à procura de Rohden, embora Pavetta não estivesse muito certa de onde o corvo o encontraria, nem como o chamaria. Até agora, admirava-a o fato de que aquele pequeno pássaro conseguisse demonstrar tamanha consciência sobre as coisas, mas não negava o quanto aquilo fora útil na situação presente. Enquanto esperava, agoniada e ansiosa, o retorno deles, andando de um lado para o outro no canto da biblioteca, em nenhum momento os lamentos de Calendra pararam de soar em seus ouvidos.
Isso a fazia pensar no quanto ficara abismada, até mesmo incrédula, com a história que ela lhe contara, todavia tentava ignorar aquele sentimento ao máximo que sua capacidade mental lhe permitia. Chegara a brincar com suas impressões de Calendra, dizendo-lhe tudo que sentira perto dela, mas, apesar de aquilo não ser uma mentira, não imaginara que seu poder seria de fato tão impressionante. Pavetta nunca conhecera alguém como ela, ainda mais que fizesse questão de esconder toda a capacidade que tinha. Imaginava os estudantes arrogantes do Círculo — em especial Johan, a quem, mesmo depois de tanto esforço, simplesmente desprezava — e se perguntava o que todos eles achariam daquela novidade, ou o que ainda faziam perdendo seu tempo por lá. Não havia chance para qualquer um deles, de qualquer modo, não com Calendra por perto. Certamente Pavetta não a trataria de modo diferente agora que sabia de seu segredo, mas não estava tão certa de que os outros o fariam. Pensou na frequência com que Namath mencionara, emocionada, a existência de Calendra, bem como a magia que parecia impregnada nela; todavia, Pavetta acreditava que nem mesmo a mestra soubesse do alcance total das habilidades da pupila.
Ao encará-la, Pavetta tinha cada vez mais certeza de que aquilo fosse verdade. Calendra a lembrava um ser místico e selvagem, com sua cabeleira negra jorrando para todos os lados, as írises da cor mais pura de violeta, os lábios cheios e rosados, a postura elegante, as mãos de trejeitos delicados. Parecia pertencer a outro mundo, mais vibrante e vívido, não ao ordinarismo de Vaugalath. Pavetta poderia não ser uma boa vidente, porém era experta em sentir as emoções, e dissera a verdade ao afirmar à Calendra que chegaria o momento em que escolheria segui-la. Em seu coração, uma sensação lhe gritava que aquele evento sequer estava distante.
Depois do que pareceu uma eternidade, Pavetta entreouviu vozes agitadas soando através das paredes da biblioteca. Também escutou os resmungos contrariados de Hansel. Logo mais, Rohden surgiu na curva do corredor, devastador como uma tempestade. Seu corpo alto e esguio aproximou-se depressa, os olhos procurando até se depararem com a irmã encurvada na cadeira. Uma onda de alívio cruzou seu rosto barbado. Ele se agachou ao lado de Calendra e cuidadosamente cobriu seu rosto com as mãos, puxando-o pelos fios de cabelo da nuca de modo que pudesse olhar em seus olhos. Quando ela não acordou, deu leves tapinhas nas suas bochechas, chamando-a pelo nome. Mesmo assim, Calendra seguia em seu universo particular. Então, com uma delicadeza que Pavetta jamais esperaria de um homem tão grande, Rohden enlaçou os membros superiores da irmã ao redor do próprio pescoço e a tomou nos braços fortes, fazendo-a parecer uma boneca de pano, seus longos cabelos voando com a movimentação brusca.
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Ocultos
Fantasy[ELEITA A MELHORES HISTÓRIAS DE 2021] [LIVRO 1] O pacato vilarejo de Vaugalath é o lar de muitos segredos misteriosos, guardados com afinco para impedir que um grande mal ressurja das sombras e cause a destruição definitiva dos povos keltae, que vin...