Seu olhar se transformou com a decisão. Ela foi sorrateiramente percorrendo a distância do agrupamento de árvores, atraída pelo odor da fumaça que subia pelo céu. Quando chegou perto da margem do bosque, agachou-se e começou a rastejar para a beirada, encontrando abrigo em um tronco tombado. Os corpos das pessoas mortas continuavam nos mesmos lugares, porém ela notou um movimento estranho vindo do meio deles, quase como se alguém estivesse preso no amontoado de cadáveres e lutasse para sair. O movimento persistiu por mais um tempo, e sempre que a pilha era empurrada alguns corpos despencavam ao chão.De repente, a pessoa — pelo menos ela achava que se tratasse de uma pessoa — conseguiu sair do interior do montículo. Sua cabeça despontou, embora estivesse virada em um ângulo absurdo. Alguma coisa estava presa em seu pescoço, e na escuridão da noite Calendra demorou para fazer sentido na cena diante dela. E assim que as chamas bruxuleantes do fogo foram levadas naquela direção pelo vento, ela entendeu que no final das contas nunca havia se tratado de uma pessoa.
Calendra sentiu a bílis lhe subir à garganta. O que circundava a cabeça daquela pobre alma eram mandíbulas, e os dentes da criatura se fechavam com força sobre a jugular destroçada. Ela deslizou pela pilha de corpos e largou o pedaço de carne para que pudesse se alimentar dele. Calendra observou seu mastigar lento com repulsa, e o pior era que mais delas circulavam por ali fazendo exatamente a mesma coisa.
As bestas tinham a forma quase idêntica à de cães selvagens, mas eram maiores e mais fortes. Longas patas magrelas se estendiam a partir do tronco, com garras afiadas rasurando a terra lisa. No comprimento da coluna, um calombo deformado se projetava para fora, deixando-as com uma aparência medonha. Porém, isso nem era o mais aterrorizante. O que mais apavorou Calendra foi perceber que a pele delas parecia esticada ao longo do corpo, sem pelos e com aspecto áspero e róseo, com rugas e deformações semelhantes a queimaduras cicatrizadas.
Não sendo capaz de assimilar mais nada, Calendra se abaixou atrás da árvore, tentando afastar as lágrimas. Mas as imagens eram vívidas demais. Ela não parava de se questionar de onde teriam surgido aquelas coisas, o que eram, o que queriam.
Petrificada como um dos fragmentos da fonte, Calendra mal se permitia respirar. O menino dissera que as criaturas tinham audição apurada, mas o que pensar do olfato? Será que sentiriam seu cheiro, farejariam seu medo? Ela não tinha mais tanta certeza se tomara a melhor decisão ao voltar para o centro do caos, e estava mesmo pensando em retornar quando uma voz conhecida bradou de repente:
— Afastem-se deles, suas criaturas imundas! — Era o menino.
Calendra se virou a tempo de vê-lo pegar impulso e sair em disparada para perto das criaturas devoradoras de carne humana. Segurou o ar como se pudesse impedi-lo apenas com a força de vontade, mas é claro que ele não a obedeceu. Em vez disso, observou com apreensão enquanto o menino ganhava velocidade a cada passada das pernas. Seu corpo miúdo ultrapassou cadáveres e pedregulhos sem sequer os notar, com o único propósito de ir em frente, até ter atingido a primeira das criaturas que espreitava por ali. A força do impacto surpreendeu tanto Calendra quanto a própria criatura, que logo se posicionou para contra-atacar. O embate era assustador, com aquela criança adorável sendo mordida e arranhada pela fera ao mesmo tempo que lhe aplicava golpes precisos e fortes que a fizeram recuar, fugindo para longe.
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Ocultos
Fantasy[ELEITA A MELHORES HISTÓRIAS DE 2021] [LIVRO 1] O pacato vilarejo de Vaugalath é o lar de muitos segredos misteriosos, guardados com afinco para impedir que um grande mal ressurja das sombras e cause a destruição definitiva dos povos keltae, que vin...