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Com os olhos perdidos em algum lugar à frente, Calendra fazia círculos com o dedão do pé sobre o assoalho de madeira, enquanto refletia acerca das palavras que seu irmão acabara de ler no livro

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Com os olhos perdidos em algum lugar à frente, Calendra fazia círculos com o dedão do pé sobre o assoalho de madeira, enquanto refletia acerca das palavras que seu irmão acabara de ler no livro. Seria mesmo possível que Namath tivesse, de alguma forma, vivenciado uma experiência tão parecida com a dela? Ao cogitar a ideia, ela lhe pareceu impossível, um completo absurdo. Ambas haviam passado por situações bem diferentes e tiveram relatos igualmente destoantes. Mesmo assim, não podia negar as pequenas semelhanças entre ambas as visões, muito menos que algo nas palavras de Namath despertara o interesse de Calendra para seu conhecimento sobre o assunto, conhecimento este que ela sequer suspeitava que Namath possuísse.

Por que Namath nunca lhe contara que participara de um ritual dessa magnitude? A mestra sempre soubera sobre as habilidades de Calendra, inclusive a ensinara uma porção de coisas úteis a respeito delas — a maioria sendo maneiras de evitá-las. Também, Calendra sabia que Namath tinha um pé mais próximo do lado de lá do que a maior parte das pessoas. Embora nem se comparasse ao de Calendra, era suficiente para fazer de sua mestra uma pessoa muito sábia e poderosa.

De repente, uma lembrança indistinta começou a tomar forma em seus pensamentos. As imagens eram confusas e um pouco borradas, mas ela conseguiu identificar alguns detalhes que lhe fizeram recordar uma data festiva comemorada em Vaugalath: Noite de Litha, um dos festivais mais aguardados pelo povo do vale.

Calendra só podia ser muito jovem para se lembrar daquela noite, porque fazia muitos e muitos anos que não comparecia ao festival de verão. De qualquer modo, lá estavam as memórias dos odores da boa comida sendo preparada, da fumaça das fogueiras, do perfume das velas que circulava pelo ar. Litha era sempre vibrante, e os olhos cobiçosos da menina Calendra estavam atentos nas cores e nos sorrisos radiantes que iluminavam o rosto dos transeuntes.

Mas nem tudo eram flores e ela logo se deu conta do porquê. Enquanto, ainda pequenina, corria pelas vielas iluminadas, cercada por árvores e muros altos de pedra amarronzada, completamente deslumbrada pelas fitinhas que se balançavam com a brisa, acabara se afastando de seus pais e se vira perdida em meio à multidão.

Sentira, pela primeira vez em sua curta vida, a opressão da solidão como um peso no peito. Com um desespero cada vez maior, olhava desde baixo para as pessoas altas à sua volta e não conseguia adivinhar quem eram, tampouco saberia dizer para onde iam. Por mais que tentasse localizar a familiaridade dos trajes de seus pais, não fora capaz de os distinguir naquela floresta de corpos em movimento. Todos andavam e dançavam tão distraidamente que não notaram a diminuta criança. Ela perambulava sem rumo, tomada pelo medo de não ser encontrada por ninguém.

Naquele breve momento, tivera uma convicção profunda de que permaneceria para sempre longe da família, sozinha em um mundo tomado de estranhos. Calendra ainda podia sentir o aperto doloroso preencher seu peito, mesmo que anos tivessem se passado desde aquela noite. O desespero a consumira de tamanha forma que não lhe coubera alternativa além de se refugiar em um cantinho sossegado e longe do movimento, uma reentrância entre o jardim florido de uma casa e o arco de pedras que se erguia logo ao lado. Enfiara-se lá e permanecera durante horas, chorando baixinho, buscando consolo onde esperanças não podiam ser construídas.

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