Uma tumba a céu aberto.Centenas de cadáveres estavam espalhados pela terra castigada, em meio aos escombros e às réstias da vegetação selvagem. Montículos de corpos empilhados despontavam a perder de vista, o sangue se espalhando ao redor deles como as águas de um rio. A maioria estava transfigurada. Cabeças pendiam — quando houvesse cabeças —, com as bocas arreganhadas e os olhos esbugalhados. Os membros, na melhor das hipóteses, encontravam-se jogados ao lado, mas a maioria seguia irreconhecível.
Próximo a ela, uma espessa e viscosa poça escarlate fazia seu caminho pelos frisos do solo, desviando de seus pés por pouco. Seu olhar foi atraído para uma garotinha estirada na curva de um tronco de árvore. Parecia ter procurado abrigo ali dentro ao arrastar o corpo pelo chão. Havia marcas na areia onde suas mãos se agarraram, além de uma incrível quantidade de sangue. Agora, porém, ela estava praticamente imóvel, seu peito subindo e descendo como o único movimento visível. A origem da hemorragia vinha de uma laceração na região abdominal, um buraco disforme e dentado que expusera seus órgãos internos e liberava um cheiro ferroso.
Ao encarar aqueles grandes olhos castanhos, percebeu o leve tremular de suas pestanas. Uma lágrima descia pela curva do rosto, seus lábios entreabertos para captar melhor o ar. Quando Calendra se aproximou, notou que a menina estava a um triz de perecer, tanto que ela mal percebeu a presença da moça ao seu lado. Teve tempo apenas de fechar suas pálpebras antes que o ar parasse de lhe fluir nos pulmões e ela nunca mais retornasse à vida.
Antes de sucumbir ao desespero e se permitir chorar devido à perda daqueles desconhecidos, uma voz sussurrou em sua mente. O comando foi claro: siga em frente. Surpresa por constatar que o poder não vinha dela, mas da sombra, ergueu a cabeça e decidiu obedecê-la. Impelida adiante, Calendra simplesmente caminhou em meio aos corpos, os dedos tremulando pela eletricidade emanada por cada um deles.
Não precisou olhar para saber onde pisar, o caminho parecia se abrir de modo natural e fácil. Esperou apenas alguns instantes antes que o jorro de emoções tomasse seus sentidos. Percebeu a confusão, o terror, a raiva, a obstinação, a esperança. Enquanto isso, seus olhos vasculhavam os rostos ao passar, buscando traços familiares, mas nenhum dos que ali estavam lhe atraía a atenção em particular — pelo que sentiu, com uma pontada de culpa, alívio profundo.
Observou enquanto os espectros daquelas pessoas vinham a partir de diferentes direções, fugindo das explosões de fogo que pareciam surgir a partir do próprio ar. O calor era tão intenso que a maioria morrera em segundos, os subsistentes buscaram abrigo sob as frondosas árvores do Jardim de Kalamad, agora completamente destruído.
O local lhes parecera seguro; porém, dos orifícios da grande estátua que decorava a fonte de pedra próxima ao canal, começara a sair uma fumaça espessa que tomara o ar e pouco a pouco cobrira a luz do sol, agitando-se ao redor deles. O cheiro os assaltara, paralisando-os com um medo tão profundo que lutar parecia não fazer sentido. A maioria se rendera ali, mergulhada na própria agonia, mas alguns ainda correram ao perceber que formas sombrias se agitavam na fumaça. Elas cercavam sorrateiramente os corpos dos que estavam paralisados, levando consigo a vida de todos. Era uma sensação desesperadora a de observar amigos e familiares sucumbindo à escuridão, soltando lamúrias de desespero, sem poder fazer nada.
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Ocultos
Fantasy[ELEITA A MELHORES HISTÓRIAS DE 2021] [LIVRO 1] O pacato vilarejo de Vaugalath é o lar de muitos segredos misteriosos, guardados com afinco para impedir que um grande mal ressurja das sombras e cause a destruição definitiva dos povos keltae, que vin...