Bem distante daquele pavoroso cenário de morte, em meio às árvores e pedras do bosque, onde os pássaros cantavam distraídos e as folhas farfalhavam pela leve ação do vento, alguém corria apressadamente por direções indefinidas. Seu olhar era aflito, os ouvidos atentos aos ruídos ao redor. Pensava estar tomando o caminho correto, pela forma como o som do choro da irmã ecoava nas redondezas, mas o acúmulo de algumas vezes cometendo o erro de supor que se aproximava dela, apenas para descobrir que retornava ao ponto de partida, frustrava-o. Mesmo assim, mantinha a determinação, guiando-se pela urgência de colocar os olhos sobre ela.Em dado momento, percebeu que o chão estava revirado em vários locais, como se pés humanos o houvessem sulcado em uma tentativa desesperada de fuga. Aproximando-se dos rastros, com máxima atenção os observou, notando, para seu completo horror, que não se tratava apenas de pegadas, mas de marcas de mãos, cotovelos e joelhos. Logo ao lado, fios espessos de sangue se espalhavam.
Com uma pressa ainda maior, tomou a mesma direção das pegadas, ladeando sua trilha a fim de não se perder. Quanto mais andava, maior era a quantidade de sangue e mais audíveis os bramidos da irmã. Apertou o passo, temendo que ela estivesse em perigo e já imaginando incontáveis cenários terríveis em sua mente. Só não esperava encontrar algo ainda pior.
Calendra estava estirada no chão, o corpo espasmódico, convulsivo. Daquela distância, não podia dizer o que a mantinha assim, embora suspeitasse. Viu que seus braços e pernas estavam cobertos de feridas, das quais o sangue escorria livremente. As manchas escarlates começavam a coagular no instante em que se misturavam com a sujeira, adquirindo uma coloração amarronzada que se grudava por toda a pele, não apenas do corpo. Enquanto o seu pescoço se revolteava, os cabelos desgrenhados lhe cobrindo a face, ele conseguiu divisar o movimento de seus olhos, que chegavam a se revirar atrás das pálpebras. Ela urrava, respirando de modo ofegante e expelindo sons desconexos por entre os dentes cerrados. Sua expressão era tão macabra que sequer lembrava a da pessoa que julgava conhecer por toda a sua vida.
Pânico começou a tomar conta dele ao confirmar o que acontecia com ela. Ele se agachou ao seu lado, tomando-a nos braços a fim de conter seus movimentos frenéticos, muito embora os esforços não se comparassem à intensidade do que a conservava inconsciente. Parecia que garras tomavam conta de Calendra e não o permitiam se aproximar. Ao tentar segurá-la, sentiu uma força vinda do interior dela devolver os solavancos na mesma intensidade; ao gritar o seu nome e implorar para que acordasse, tanto que sua voz murchou para uma rouquidão sôfrega, recebeu apenas a indiferença. Quanto mais o tempo passava, maior o desespero pela inércia da irmã.
Por sua vez, para Calendra, cuja mente permanecia no limbo entre os mundos, as lembranças nítidas da morte testemunhada provocavam em sua boca um ranço amargo. A força de vontade que exercia sobre si não parecia bastar para se livrar das amarras da sombra, fazendo-a acreditar que permaneceria ali para sempre.
O que lentamente a fez se orientar na escuridão foi o eco da voz de seu irmão, guiando-a pelo caminho até estar de volta, mesmo que tivesse tardado a perceber a diferença entre uma coisa e outra. Sentiu-se livre, enfim, quando, em seus pulmões, entrou ar fresco e, em sua mente, o peso a abandonou.
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Ocultos
Fantasy[ELEITA A MELHORES HISTÓRIAS DE 2021] [LIVRO 1] O pacato vilarejo de Vaugalath é o lar de muitos segredos misteriosos, guardados com afinco para impedir que um grande mal ressurja das sombras e cause a destruição definitiva dos povos keltae, que vin...