capítulo 7 Um traço de luz na escuridão

14 4 1
                                    

  Bianca andava para lá e para cá enquanto o fogo crepitava e soltava pequenas faíscas que se elevavam ao céu.
– Eu não estou maluca! – dizia Bianca.
 – Não, imagine! – concordou Analice. – Você está agindo como uma pessoa super normal agora!
 – Foi só um sonho, Bianca – explicou Bran.
– Não foi um sonho! – Bianca parou de andar para encará-los. – Frabatto esteve aqui e me levou até um lugar onde Zac e os trolls estavam atacando! Foi muito real!
 – Ninguém veio aqui e você não saiu – explicou Bran. – Eu teria visto!
  Foi aí que Bianca olhou para o fogo, deixando que sua mente se iluminasse com a razão.
– Tem razão... – concordou ela. – Nós passamos quase na sua frente e você nem tchum!
  Bran não sabia o que tchum queria dizer, mas preferiu deixá-la terminar seu raciocínio, ou o que quer que fosse aquilo.
– Eu não saí! Meu espírito saiu!
   Analice arregalou os olhos.
 – Como um fantasma? – perguntou ela.
 – Sim, eu já li algo a respeito! Eu saí em viagem astral! E Frabatto veio aqui assim também! Por isso Bran não nos viu!
 – Nossa! E você já fez isso antes? – perguntou Analice, curiosa.
– Sei lá! Acho que aqui as coisas são mais intensas! Porque eu lembro de tudo como se fosse real! Do calor, dos gritos, do cheiro de queimado...
  Eles se sentaram perto da fogueira e Bran quis saber mais.
 – Como era o lugar? – perguntou ele.
  Bianca contou o que viu. Bran reconheceu o lugar como uma das plantações de frutas de Asram. Um ataque a uma plantação dessas comprometeria a alimentação do reino.
– O que ele está tentando fazer? – perguntou Analice.
 – Se vingar, acho... – respondeu Bianca. – Ele ia matar Arland, o capitão da guarda... Ia mesmo! Eu vi nos olhos dele e era ódio puro!
– E por que ele não matou? – perguntou Bran.
– Porque eu pedi! Eu gritei pra ele e ele me viu! E me ouviu quando pedi que ajudasse o elfo a sair do celeiro que pegava fogo.
– Estando em espírito, você seria vista? – pensou alto Analice.
 – Talvez... – respondeu Bran. Considerando quem estava com ela, tudo é possível... Frabatto é um mago bem peculiar, pelo que dizem.
  Bianca abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles.
  – Zac não é mais Zac...
  Ficaram em silêncio ouvindo os estalos da fogueira por alguns momentos, até que Analice levantou a cabeça e saiu de seu aparente torpor.
 – Não, não é! Mas ele se lembra de alguma coisa!
  Os outros a olharam curiosos. Analice se levantou, animada.
 – Bianca, ele ainda pode ser o Zac que conhecemos! Talvez ele só precise que nós o lembremos, como você fez agora! Pense bem: ele poderia ter matado Arland! Na verdade, ele ia matá-lo! Mas parou por você! E depois, ainda o tirou do celeiro em chamas e retirou os trolls,
interrompendo um ataque que estava indo muito bem até agora. Isso quer dizer que há algo nele que só precisa de uma ajuda para vir à tona... Como uma brasa que precisa ser soprada! Os olhos de Bianca brilharam com a constatação de que a amiga estava certa. Ela se virou para Bran, que sempre parecia friamente sensato.
– Ela tem razão... – concordou o elfo de cabelos cor da noite. – Agora, conte-nos tudo o que Frabatto lhe disse! Talvez possa nos ajudar!
  Bianca então contou tudo o que aconteceu, tentando se lembrar dos mínimos detalhes. Eles memorizaram o que consideraram importante, antes de finalmente dormirem por algumas horas.

  *****

  Quando os trolls retornaram ao seu covil, o estardalhaço lembrava homens bêbados sacudindo lonas enquanto falavam muito alto. Kajinski foi até Boldan, um troll grande e que tinha um chifre de ponta quebrada e que Kajinski considerava razoavelmente inteligente.
– O que aconteceu? – perguntou Kajinski. – Por que voltaram tão cedo?
 – O rei interrompeu o ataque! Ordenou a retirada.
 – Por quê?!
 – Não sabemos! Ele ia matar o capitão da guarda. Então o jogou dentro de um celeiro e depois o tirou de lá e ordenou a retirada.
  Boldan não sabia dizer mais nada e Kajinski foi até os aposentos de sua majestade. Não podia deixar que sua antiga personalidade aflorasse de
jeito nenhum. Precisava mantê-lo numa vibração que lhe permitisse continuar  sendo um troll.
  Kajinski entrou no quarto e se deparou com seu rei andando nervosamente pelo aposento. Dava para ver pelos seus olhos que ele não estava de fato ali.
– O que aconteceu, majestade? – perguntou Kajinski.
 – Com o que? – retrucou Zac, sem parecer muito interessado.
 – Com o ataque à plantação do reino de Asram! Boldan me disse que vossa majestade ordenou a retirada quando estavam em clara vantagem!
 – Ah, isso! – Zac fez um movimento com a mão no ar. – Não importa, esqueça!
– O quê?!
– Nós precisamos achá-la!
 – Achar quem, majestade?
 – A moça! Ela apareceu pra mim e eu senti... algo! Era como se eu fosse outra pessoa e vivesse em outro lugar! Ela deve saber! Precisamos achá-la!
  Kajinski viu o brilho nos olhos de Zac. O que ele temia estava acontecendo. Lhe dera três doses da poção das sombras para aumentar a escuridão na alma dele. E bastou apenas um olhar, um segundo na presença da menina que a escuridão já começava a recuar.
– Claro, majestade! Como quiser!
 – Mande os melhores trolls! Os mais inteligentes, porque não quero que a machuquem, entendeu? Não, deixe! Melhor eu mesmo dar essa ordem! É importante demais!
– Majestade! – interpelou-o Kajinski, que queria estar a sós quando desse a ordem que pretendia aos trolls. – Pode deixar que eu faço isso!
  Zac o olhou e então, como se percebesse alguma coisa em seus miúdos olhos avermelhados,respondeu.
– Não. Eu faço isso.
  Ele saiu e Kajinski o seguiu, tentando disfarçar seu contragosto. Chegaram aos aposentos dos trolls que eram considerados mais fortes e inteligentes, os que comandavam os outros. Eram mais de quarenta e Zac queria mandar todos, mas Kajinski lembrou que eles também estavam sob ataque, pois agora a guerra era uma realidade, já que atacaram uma das plantações do reino. Zac pensou um pouco.
– Está bem. Talvez seja melhor, não quero assustar a moça... Irão apenas três.
– Majestade, escolha Boldan. É um troll eficiente, vai conseguir o que vossa majestade pediu.
  Zac concordou, escolhendo então Boldan, Task e Jurubin.
 – Quero que prestem atenção!Procurem por uma moça de cabelos escuros! Ela tem uma aura brilhante, um tom de voz engraçado, um brilho no olhar!
  Os trolls se entreolharam confusos.
– Talvez seja melhor dar uma descrição menos poética, majestade... – ajudou Kajinski.
 – Ah, claro!
  Zac se virou, pensando um pouco. Então descreveu Bianca como pode. Lembrou de uma única coisa que talvez fizesse diferença.
– Ela usa uma garrafinha de cristal no pescoço, como um colar!
  Bom, não eram muitas moças que usavam tal adorno peculiar, então isso podia ajudar.
– E lembrem-se! Não a machuquem! Eu a quero aqui inteira, entenderam?
  Zac os dispensou e saiu. Kajinski ficou para trás e chamou Boldan, enquanto os outros se dirigiam para a área de alimentação, onde comeriam antes de saírem nessa estranha missão.
– Boldan, preciso que faça uma coisa para mim...

  ****

  Escurecera. Os cavalos trotavam calmamente e a conversa subitamente morreu. Lorena, Marcos e Marcel olhavam em volta. As folhas da floresta negra eram escuras e brilhantes e os cascos das árvores pareciam feitos de petróleo. Eileen seguia no cavalo de Lorena e permanecia quieta.
– Estou preocupado... – disse Marcel.
 – Você?! – debochou Marcos. – Preocupado? Nossa, que surpresa...
 – Está muito quieto aqui...
  O cavalo de Marcel se agitou e ele parou.
 – Há perigo adiante... – murmurou Marcel.
  Todos sentiam o calafrio que precede um perigo. Parte da intuição ou de um instinto mais antigo que o homem, o da sobrevivência, os fizeram sentir que havia algo errado.
– O que fazemos?
  Eles estremeceram. A temperatura havia caído abruptamente, embora não houvesse vento. O silêncio era total e nem mesmo as folhas eram ouvidas em seus murmúrios. Marcel desceu rapidamente do cavalo.
– Rápido! – ordenou ele. – Desçam e amarrem os cavalos!
  Marcel falava e agia com a propriedade de quem sabia o que estava fazendo, embora Marcos e Lorena não tivessem ideia de como isso seria possível. Obedeceram e amarraram os cavalos em uma árvore muito próxima, enquanto Marcel traçava um círculo com um pó branco em volta deles e dos cavalos. 
– O que é isso? – perguntou Lorena.
 – Não faço ideia! – respondeu Marcel, terminando o círculo. – Mas Oisin me deu e disse que nos protegeria de seres encantados mal intencionados!
  Na pressa, ele não traçou um círculo enorme, mas apenas o suficiente para que todos coubessem dentro dele. Lorena pegou Eileen no colo, pois a menina estava assustada. A floresta em volta deles continuava escura e silenciosa como uma mortalha e o círculo de pó branco não parecia proteção contra coisa nenhuma.Ouviram galopes. Eram secos e o chão tremia. Juntaram-se dentro do círculo, Marcos e Marcel puxando suas espadas, Lorena apertando a fadinha no colo. Os cavalos se agitaram e relincharam, tentando se livrar e se não estivessem amarrados, teriam corrido para muito longe dali em poucos segundos.
  E então, do meio do breu da floresta, surgiu uma visão apavorante. um cavalo negro galopava em sua direção. A ausência da cabeça fez os três gritarem. No lugar desta, labaredas de fogo avermelhado iluminavam o forte corpo do cavalo que vinha em desabalada correria na direção deles.
  O primeiro impulso foi saírem correndo, mas Marcel gritou para que não saíssem do círculo. Quando a criatura alcançou a linha do pó branco
estancou com violência, empinando agressivamente. A coisa deu alguns passos para trás e então cavou a terra com um dos cascos dianteiros. Começou a correr em volta do círculo, apavorando os cavalos, que começavam a se soltar.
– Segurem os cavalos! – gritou Lorena.   – Eles não podem sair do círculo!
  Apesar da paralisia que o terror lhes impingia, eles se moveram. Tentaram acalmar os cavalos, enquanto a criatura continuava correndo desvairada em volta deles. Os animais estavam apavorados e um deles empinou e derrubou Marcos, que caiu de costas no chão. Então, Lorena fez algo insano. Virou-se para a criatura do inferno e gritou com todas as suas forças.
– Vá embora!!! Nós não temos medo! Eu sou mais forte que você e eu te ordeno que vá embora! Volte para o buraco de onde você saiu AGORA!!!!
  E então, havia apenas silêncio.
  Os cavalos se acalmaram. A floresta retornou ao silêncio. A criatura tinha desaparecido.
  Lorena, sentindo as pernas bambas, caiu de joelhos. Eileen voltou a se pendurar em seu pescoço e ela a abraçou.
– Isso foi corajoso... – disse Marcel.
 – Não... – respondeu Lorena. – Isso foi desespero...
  Marcos se levantou e se aproximou dos outros com os olhos arregalados e a pele branca de susto.
– Gente!... – disse ele. – Isso foi uma mula sem cabeça???

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora