capítulo 24 o fundo do poço nem sempre é o fundo do poço

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  Bianca estava apavorada, mas gritar não estava adiantando. Mesmo assim, ela continuou gritando. A criatura a segurava firmemente, o que era bom, pois estavam a uma altura imensa. O troll subiu acima das copas batendo suas asas de morcego. Escurecera realmente muito rápido e Bianca já tinha dificuldades de ver algo além de árvores de copas escuras. Seus olhos marejaram por causa do vento e seu rosto estava frio. Sentiu o medo devorar seu coração e alma e se lembrou de Frabatto.

  “O medo não é real”.

  Ficou repetindo isso para si mesma, até que desistiu. Uma ova que o medo não era real! Aquela coisa a estava para algum covil para que ela fosse o jantar de alguma família troll. Ela seria devorada como um frango enquanto papai troll, mamãe troll e trollzinhos 1 e 2 assistiam o Fantástico.
  O troll movia a cabeça como se procurasse por alguma coisa, até que mudou radicalmente de direção. Deu um mergulho e Bianca gritou como se estivesse numa montanha russa. A criatura se aproximava do chão sem diminuir a velocidade.
– Nós vamos todos MORREEEEEeRRR!!! – gritou Bianca, vendo o chão se aproximar rapidamente.
A criatura entrou num poço de pedras, continuando a descer. Atingiram a água fria e Bianca engoliu água, se debatendo. O troll não a soltou, continuando a levá-la sabe-se lá para onde. Quando achou que seus pulmões não iam mais conseguir se encher de água, o troll e Bianca saíram da água num voo direto. Bianca tossia e estava quase desmaiada. Mal viu quando foi colocada no chão.
– Majestade, eu lhe trouxe a garota!
  Bianca tossia feito uma louca, mas conseguiu ouvir o que o troll dissera. Fez um esforço para se ajoelhar, ainda tossindo e a surpresa se estampou em seu rosto. Diante dela estava Zac, com o olhar igualmente surpreso.
  Bianca ficou tão atônita que até parou de tossir. A sua volta, outros trolls observavam curiosos.
– Levem-na para os meus aposentos! – ordenou o rei.
  Bianca foi erguida e arrastada de qualquer jeito por corredores que ela reconheceu. Foi jogada dentro do mesmo aposento onde encontrara Zac quando fora resgatá-lo. Só que ele não tinha asas e nem garras.
  Zac controlou a ansiedade. Pegou um grande jarro de vinho e partiu em direção aos seus aposentos. Deu uma ordem expressa e muito direta:
– Ninguém entra aqui – disse aos guardas. – NINGUÉM!
  Os guardas, munidos de tacapes pouco amistosos, concordaram sem hesitar. Zac entrou e Bianca estava de pé no meio do quarto. Ela se virou rapidamente assim que ouviu a porta se abrir. Estava molhada dos pés à cabeça e morria de frio, tremendo muito. Zac tinha uma jarra de barro nas mãos. Ele caminhou até uma mesa meio bagunçada e colocou a bebida em um copo. Bebeu de uma vez e voltou a olhar para ela. A menina tremia, os cabelos desgrenhados colando-se ao rosto lívido, a água pingando no meio do quarto. Ele caminhou até um canto e pegou uma manta. Foi até ela e colocou gentilmente em suas costas, enrolando-a. Os olhos de Bianca brilharam com a esperança.
– Zac? Você sabe quem eu sou? Você se lembra de mim?
  Ele estava diante dela, o mesmo rosto, só mais endurecido. Ele meneou lentamente a cabeça, acabando com as esperanças dela. Ela deixou a cabeça pender, cansada e levemente desesperada. Voltou a olhar para ele, os olhos marejados.
– Você sabe quem você é?
  A pergunta pareceu confundi-lo. Então ele se afastou um pouco dela, respondendo:
– Eu sou o rei da Corte Unseelil, a infame, a cruel, a detestável e temível Corte Unseelil!
  Bianca ficou em silêncio por alguns instantes, apenas olhando para ele.
– Não, não é não...
– Você ousa duvidar do meu sangue real? – gritou ele, parecendo um animal pronto a atacar.
  Bianca nem piscou.
– Você está enganado... Você já foi um troll... Mas um dia, você mudou por dentro e deixou de ser.
– Está maluca, humana.
– Você sabe! – gritou Bianca, de repente, enfrentando-o.
  Ela deixou a manta cair e caminhou até ele tão decidida que o rei deu alguns passos para trás.
– Você sabe que há mais em você do que isso! Você sabe!
– Eu não sei do que você está falando!
– Sabe, sim! – gritou ela de novo. – Tanto sabe que mandou me trazer aqui! Você sabe quem eu sou! Pode não se lembrar, mas aí dentro, você sabe!
Confuso, o rei a olhou, sacudindo levemente a cabeça.
– Quem é você? – disse ele, sem tirar os olhos dela – O que é você?
– Eu sou Bianca de Sant’anna Grandier. E eu sou...
  Bianca não soube se definir. O que ela era, ele queria saber. Um milhão de coisas passou pela sua cabeça, todas verdades num momento e mentiras em outro. Como poderia responder aquilo? Então a única verdade daquele momento veio aos seus lábios.
– Eu sou o seu primeiro amor.
  Bianca sentiu o momento. Sabe quando você sente o momento? Lá no fundo de seu coração ela sabia que tinha nas mãos a solução para aquele problema e tudo residia em aproveitar aquele momento. Então, ela se esticou, pois ele era um pouquinho mais alto que ela, e colou seus lábios nos dele. Ele tentou se afastar, mas ela pegou o rosto dele com as duas mãos e deu-lhe um beijo de longa metragem, um beijo de puro amor e desespero.
  Quanto seus lábios se afastaram, ela abriu os olhos e ele estava fazendo uma careta de nojo.
– Por que fez isso?! – perguntou ele, limpando a boca com as costas da mão.
– “Isso” foi um beijo! E não precisa fazer essa cara de nojo! – ofendeu-se Bianca. Imagine, se um troll tem horror ao beijo dela, era melhor desistir de vez de achar alguém na vida. Ia morrer solteira e cheia de gatos.
– Pois isso foi estranho, melado e desagradável!
– Beijo é o que pessoas que amam dão umas nas outras! – tentou explicar Bianca.
– Você está louca, humana. Sou um troll! Não amo nada nem ninguém.
Ele se virou e caminhou na direção da porta.
– Você não é um troll! É um humano, como eu!
  Ele parou.
– E antes disso, você foi um anjo.
  Ele se virou e olhou para ela, os grandes olhos azuis fixados nela.
– E eu posso provar! – decretou Bianca.
  Ele voltou a caminhar na direção dela.
– Então prove – disse ele, secamente.
  Bianca ainda tinha a mochila agarrada às suas costas. Pegou-a sem olhar e a abriu de qualquer jeito. Muita coisa dentro estava molhada e rezou para o pó do espelho das almas não ter se diluído no poço que virou o lago subterrâneo, no que possivelmente era uma passagem mágica usada pelos trolls e goblins. Isso explicava porque a Corte Unseelil surgia sem aviso em pontos tão dispares do reino a cada noite. Tudo isso passou pela cabeça dela em segundos, enquanto ela remexia na bolsa tentando achar o saco vermelho.
  Impaciente, virou a bolsa de ponta-cabeça e despejou tudo no chão. Espalhou as coisas com as duas mãos, incrédula.
– Onde está? – disse para si mesma. – Eu guardei na minha bolsa! Tinha que estar aqui!
  E então ela achou um objeto brilhante. Pegou devagar um dos brincos de Leanan Sidhe, erguendo-o para olhar melhor, enquanto a realidade se ajeitava em sua cabeça.
  Pegou a bolsa e confirmou suas suspeitas. Aquela não era sua bolsa.
Era a bolsa de Analice. Quando correram atrás das fadas, pegaram as primeiras coisas que viram, sem olhar direito, pois precisavam ir atrás delas. Ela se virou para o rei, ainda de pé esperando.
– E então? – perguntou ele, de braços cruzados.
– Não está aqui... – respondeu ela. – Está com minha amiga...
– Claro... O cachorro comeu sua lição de casa... Vamos – disse ele, erguendo-a pelo braço. – Você vai para a prisão, até que eu decida o que fazer com você.
– Viu? Viu? Você É um humano! – disse ela, meio histérica. – Olhe o que acabou de dizer!
  Ele continuou arrastando-a.
– O quê? Que vou levá-la pra prisão?
– Não! – continuou ela, temendo chegar à porta. – O que você disse antes, sobre o cachorro comer meu dever de casa!
  Ele parou.
– Como troll, você já foi à escola? – perguntou ela. – Se trolls não vão à escola aqui, como você sabe o que é um dever de casa? Sem falar que essa é uma expressão típica do meu mundo! Do NOSSO mundo!
  Ele olhou para ela muito surpreso. Soltou seu braço e ela viu um lampejo em seus olhos. Podia não ser a lembrança do velho Zac, mas ao menos era a faísca de uma dúvida. Como numa disputa de advogados num tribunal americano, ela só precisava disso: uma dúvida razoável.
– Como sabe disso? – perguntou ele. – Como sabe que eu não sou o que pareço?
– Porque eu vivi tudo isso com você. Eu estava ao seu lado. É por isso que você se lembra de mim, embora não saiba porque – explicou ela.
  Então ele pegou sua mão e a guiou para um degrau. Sentou-se e fez com que ela se sentasse.
– Conte-me o que você sabe.
     

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora