capítulo 1 Prioridades

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  Assim que o Sol banhou o bosque com seus primeiros raios, Bianca acordou com uma leve sacudidela de Bran, que também acordava Analice.
  As duas moças piscaram várias vezes e esfregaram os olhos sonolentos.
– Melhor nos prepararmos para partirmos – explicou o elfo,colocando um monte de frutinhas vermelhas numa folha diante delas.
– O que é isso? – perguntou Bianca, que desde que tinha sido traída por Asram e pelo próprio Bran, desconfiava até da própria sombra.
 – Amoras silvestres e frutas das fadas   – explicou Bran, sem se ofender. Ele sabia que consertar o que tinha feito seria um longo caminho. – Colhi no bosque.
  Ele dividiu um pão entre elas. Analice percebeu que ele mesmo não ficara com nada. Ela partiu seu próprio pão e estendeu o pedaço para elecom um sorriso.
– Não precisa, eu estou bem – disse ele.
 – Coma isso, ou eu vou bater em você! – ordenou Bianca.
  Ele aceitou. Bianca estava mal humorada, mas ninguém podia culpá-la. Não só era cedo demais para qualquer bom humor acordar, como seusúltimos dias tinham sido tenebrosos. Resgatou o namorado torturado de uma masmorra, fugiu de soldados, foi novamente emboscada e agoraestava fugindo de novo. Não tinha ideia do que tinha acontecido com seus pais, Lorena e Urbain, ou seu tio, Marcos. Ao menos seu tio Marcel tinhatido juízo o bastante para ficar longe daquela furada... E também não sabiaonde estava Zac, que já não era a pessoa que ela tinha conhecido.
  Comeram o café da manhã em silêncio e depois de mastigar umpedaço de pão, Bianca partiu um pedaço e estendeu para Bran. O elfo aolhou com os enormes olhos negros.
– Você precisa ficar forte – disse Bianca. – Temos uma jornada etanto pela frente e não sabemos exatamente se Asram virá atrás de nós.
– Ah, ele virá! – respondeu Bran. – Pode ter certeza disso! Estamoscom a noiva dele. E eu o traí. E você pode ajudá-lo a capturar Zac.
– E ele tem um ego do tamanho do universo! – completou Analice. –Não vai deixar barata nossa fuga...
  Os três ficaram mais uma vez em silêncio, como se mergulhassem em seus próprios medos por um momento. Um pássaro voou e o ventoagitou as árvores, tirando-os do torpor que o medo geralmente provoca.
– Precisamos de um plano! – disse de repente Bianca, como setivesse acordado de um transe.
– Só um? – perguntou Bran.
  Ele tinha motivos para perguntar isso. Havia uma lista de coisas afazer bem longa na agenda de Bianca.
– Muito bem, precisamos achar sua família! – começou Analice,tentando enumerar as tarefas.
– E precisamos achar Zac – completou Bianca.
– E descobrir se podemos reverter o que  houve com ele – tornouAnalice.
– E precisamos achar um jeito de voltar pra casa! Ainda temos que conseguir o elixir de Tyr Nan Og para que não envelheçamos quandovoltarmos para o nosso mundo.
– Muito bem, por onde começamos? – perguntou Bran.
– Para sabermos para onde vamos, precisamos saber onde estamos!
– disse Bianca. – Precisamos de um mapa!
  Bran rapidamente remexeu numa das mochilas de provisões que ele arrumara pouco antes da fuga. Puxou um papel dobrado e abriu-o diante das meninas.
– Aqui é a Colina dos Amores Perfeitos, o Reino de Maya, onde Asram governa. O portal do círculo das fadas que nós usamos nos trouxe até aqui, Bosque dos Gnomos, a pelo menos 100 quilômetros de nossos perseguidores.
– Eles não podem usar o mesmo portal que nós para nos alcançar? – perguntou Analice.
– Poderiam, mas eu fiz um acordo com as fadas e o portal ficaráfechado pelos próximos três dias, depois que nós passamos.
– Você pensou em tudo mesmo, hein? – admirou-se Bianca.
– Era o mínimo que eu podia fazer... – respondeu ele, de cabeçabaixa.
  Analice tocou a mão dele e a apertou, fazendo-o olhar para ela.
– Você não sabia. Esqueça isso, estamos todos no mesmo barcoagora!
– A Vila das Fadas D’Água!!! – gritou Bianca, apontando para o mapa.
– Era aqui que estávamos quando os trolls sequestraram meu pai, Eileen e
eu!
– Acha que eles ainda estão lá? – perguntou Analice.
  Bianca lembrou de sua família por um instante.
 – Duvido... – respondeu desanimada.
 – Como vamos achá-los? – perguntou Bran.
  O silêncio foi a resposta.
 – Bom... – continuou ele. – Então teremos que ir até lá de qualquer
maneira. Se eles não estiverem lá, pelo menos saberemos para onde eles
foram.
– Frabatto!!! – gritou Bianca de repente.
– Quem é Frabatto?
– O mago!!! Ele nos ajudou das outras vezes! E ele tem uma salacheia de espelhos de onde ele pode ver todo mundo! Parece o pacote maiscaro da TV a cabo, pega tudo! Sem falar que ele sabe muitas coisas, podesaber um jeito de revertermos o que houve com o Zac!
– Parece ótimo! – animou-se Analice.
 – É, parece! – Bran também estava empolgado com uma solução aparentemente simples. – Onde ele mora?
 – Na casa dele!
  Os outros dois ficaram olhando para Bianca, esperando que tivesse sido uma piada.
– Calma, não deve ser difícil de achar!    Ele mora num castelo! –explicou Bianca.
– Bianca, você sabe quantos castelos tem nesse mundo?
 – É um castelo assombrado! – insistiu Bianca, esperando que Analice ou Bran soubessem onde era.
 – Bianca, você sabe quantos castelos assombrados tem nesse mundo?
  A moça se levantou, mexendo na cabeça, tentando massagear o
cérebro ou algo assim.
 – Calma! Eu vou me lembrar!
 – O que tinha por perto? – perguntou Bran. – Como você chegou lá?
– Eu estive lá duas vezes... – disse Bianca. – Na primeira vez, óspassamos por um gigante chamado Jack que trazia cabeças vivas na cinturae tentou nos matar... Na segunda vez, fomos levados a um lugar horrível de desova de um cavalo do diabo que comia fígados.
– Não sei se é uma boa ideia irmos a esse castelo... – murmurouAnalice.
– Esse gigante, ele tinha correntes? – perguntou Bran.
– Tinha! Era um som horrível! Era o que prendia as cabeças nacintura dele!
– É Jack, o Acorrentado! Eu já ouvi muito sobre ele! – contou Bran,feliz em ter um referencial.
 – Então você sabe onde ele fica?
 – Não, mas alguém na cidade deve saber!
  Eles voltaram a se reunir em volta do mapa.
 – Aqui é a Cidade dos Ventos, a apenas algumas horas de distância a pé! –apontou Bran no mapa. – Lá, poderemos pedir informações, conseguirmais mantimentos e comprar uns cavalos.
– Comprar? – Bianca desanimou, lembrando que era assim que se sentia sempre que via a etiqueta de uma roupa bonita numa loja de grife. –Não temos dinheiro...
– Droga! – Analice se sentou chateada no chão. – Eu tinha dinheiro!No meu quarto!
– Me perdoe senhora... – disse timidamente Bran, sem encararAnalice.
  E então ele retirou um saquinho dourado cheio de moedas ealgumas joias de dentro do casaco e entregou para ela.
– Minha bolsa!!! – festejou Analice.
 – Me perdoe, mas eu tive que pegá-la antes de fugirmos! Eu não quis faltar com o respeito e não quero que pense que sou um ladrão!
  Analice sorriu feliz.
 – Está brincando, Bran? Você provavelmente nos salvou de novo!
 – É que eu peguei mais uma coisa em seus aposentos...
  Então, diante dos olhos curiosos de Analice, ele tirou uma coisa embrulhada em tecido de dentro da mochila. Analice se iluminou quando viu o caderno de poesias que viera de seu mundo.
  Bianca olhou surpresa para o caderno.
– Sério? Um monte de coisas preciosas e você pega um caderno de poesias??! Ah, qual é?!
– Cala a boca, Bianca! – ralhou Analice com a amiga, abraçada ao livro. – Esse livro veio do nosso mundo! É a única lembrança que eu tenho de minha casa...
  E então ela pareceu murchar e entristecer.
– Asram foi buscar esse livro na minha casa no nosso mundo... –disse ela. – Mesmo sendo perigoso, ele foi até lá e trouxe para mim meucaderno de pensamentos... Foi a coisa mais bonita que alguém já fez por mim...
  Bianca não falou mais nada. Bran também não. Recolheram as coisas
e se colocaram a caminho.
   
                                *****
  Nessa mesma manhã, outras quatro pessoas tinham uma discussão
parecida, mas em cavalos. Lorena, mãe de Bianca, ia em seu cavalo com a
pequena Eileen, a fadinha de asas pequenas demais para voar, ao lado de
Marcos e Marcel. Cavalgavam em direção a Luzandefall com um objetivo
similar ao dos três jovens que tomavam a direção da Cidade dos Ventos:
buscar informações.
  Depois de ver a cabana onde Urbain Grandier e Eileen estavam queimar até o chão, acreditando que estavam ambos mortos, a esperança voltou com as asas da fada que não voa, que surgiu de uma mata onde tinha se escondido. Eileen, ainda apavorada, contou o que aconteceu. Urbain fora atacado e levado por mercadores de escravos. A ideia era assustadora, mas nem se comparava com a morte nas chamas, destino do qual ele já escaparaantes.
– Se o querem como escravo, vão mantê-lo vivo! – disse Marcel,tentando acalmar Lorena. – Escravo morto não vale muita coisa...
  Isso era um fato, mas todos eles conheciam o temperamento deUrbain. Entre o charme e a cólera, Urbain Grandier fora um padre polêmicoque teria terminado na fogueira depois de torturas terríveis. Não escapara
totalmente das torturas, mas escapara da fogueira, graças à ajuda deLorena, Marcos e Marcel, 17 anos antes. Urbain amadurecera, masmantivera a vaidade e o charme. O temperamento brigão tinha sido controlado, mas não sabiam como ele iria agir se colocado à prova. Escravizar Urbain seria como domesticar um jaguar. Haveria sangue. Ou do jaguar, ou de quem estivesse tentando domesticá-lo. E, justamente por isso,não tinham muito tempo.
   Chegaram à cidade e foram direto à taberna onde arrumaram confusão assim que chegaram. Claro que não foram muito bem recebidos,mas algumas moedas no balcão amenizaram o humor do dono.
– Estivemos aqui antes – disse, redundantemente Marcel.
– Eu sei – respondeu como um bloco de gelo o homem atrás dobalcão. – Eu me lembro.
– O homem com quem o nosso amigo brigou, o que estava atazanando suas garçonetes, quem era? – disse Marcos.
– Minhas o quê?!
– As moças que estavam servindo! Quem era o abusado e onde podemos encontrá-lo?
  O homem pareceu desconfortável e olhou em volta. Mais algumas moedas jogadas sobre o balcão por Marcel e uma ameaça de Lorena de tornar a vida dele miserável se não falasse a verdade aceleraram sua decisão. Assim, quando Lorena, Marcos, Marcel e Eileen saíram dali, tinham algumas informações. Não eram muitas, mas era o bastante para começar. Agora era torcer para que Urbain aguentasse a barra sem fazer nenhuma besteira.

                           *****

   Caminhava por corredores escuros e úmidos, as pedras como mudas
testemunhas de sua passagem. Não estava com medo. Lembrava-se disso. O lugar era assustador, mas não tinha medo porque não tinha motivos para
ter medo. O medo só chegou quando a porta se abriu e viu os instrumentos
de tortura.
   Foi agarrado e preso, ninguém respondia às suas perguntas, e antes que pudesse pensar, o chicote estalou em seu corpo, rasgando sua carne, cortando sua alma, fazendo-o gritar.
   Zac acordou sobressaltado, suor na testa e uma respiração ofegante.
  Na porta de seu quarto surgiu a figura de Kajinski, um troll velho e magro de olhos miúdos que pareciam ver muito mais longe do que se podia imaginar.
   – Algum problema, majestade?
   Zac tentou falar, mas não conseguiu.    Levantou-se da cama úmidacom seu próprio suor e foi até a mesa, onde molhou o rosto com a água deuma bacia de cobre.
  – Foi um pesadelo? – sondou Kajinski, andando pelo quarto maliluminado por velas como se fosse uma assombração, os olhinhosbrilhando na escuridão.
  Zac olhou diretamente para ele, um tanto surpreso.
  – Não... Foi uma lembrança... Descobri como fui parar nas mãos de Asram. Achei que ele tinha me capturado, mas eu fui andando ao lado dele.
  Era como se fôssemos... amigos.
  – Então é ainda pior! – aproximou-se Kajinski. – Significa que ele o traiu! Por isso mesmo ele e seu povo devem pagar caro!
  – Mas... – Zac tentava voltar ao pesadelo para ver mais, saber mais. – Como um elfo da realeza poderia ser amigo de um troll como eu?
  Zac andou pelo quarto. Sua memória estava em frangalhos.Lembrava-se de sua vida de troll, mas aos pedaços, como se fossem flashes. Não reconhecia de fato nenhum daqueles trolls que o cercavam. Lembrava-se que um dia teve um irmão e um pai. E a lembrança o fazia tremer. Lembrava-se muito vagamente de Kajinski, sempre ao lado de seu pai. E então... De repente estava atacando elfos e erguendo Asram com ódio até o céu, soltando-o para a morte a seguir. Não tinha certeza de como achou o caminho até o covil dos trolls onde Kajinski os mantinha, mas tinha certezade que estava transbordando de ódio. Sentia-se traído, aviltado e seu sentimento se traduziu numa única ordem. Assumiu o lugar que de certa forma sabia ser seu. Seu pai era o rei dos trolls. Na falta dele e do irmão mais velho, só restava ele. E seu primeiro ato foi ditado pelo ódio e pela
dor: Kajinski deveria reunir todos os trolls que encontrasse. E deviam se preparar. Porque haveria guerra.
   – Talvez tenha sido um pesadelo, majestade, e não memórias... –começou a falar Kajinski, mas seu rei o interrompeu.
   – Não fale mais nada, Kajinski! Apenas saia e me deixe dormir!
  O velho troll hesitou por um momento, mas terminou por concordar com um movimento de cabeça e se retirou.
  No quarto, Zac olhou novamente para a cama e caminhou até ela com determinação. Deitou-se e olhou para o teto, as asas negras abertas e amente também. Se essas lembranças queriam chegar a ele, que chegassementão. Ele queria saber o que diabos acontecera.

  No corredor, Kajinski caminhava lentamente enquanto sua mente
trabalhava muito mais rápido. Ele sabia da importância de Zac em seus planos. Tê-lo de volta à sua antiga forma era mais do que ele podia querer, mas não podia se dar ao luxo de perdê-lo. Suas lembranças eram um risco.Somos as nossas memórias. Sem elas, somos caixas vazias. Se Zac tivesse suas lembranças de volta, na ordem certa, ele saberia quem era. Kajinski sempre teve esperança de que Zac trazia dentro dele uma parte selvagem e cruel, sua herança troll, pois certas coisas nunca mudam. Porém, não gostaria de arriscar. Era hora de dar uma espiadinha nas possibilidades. E ninguém melhor para isso do que uma bruxa.

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora