Capítulo 38 Fogo Cruzado

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  A adrenalina não permitia o pousar do cansaço. Mas Marcel reclamava assim mesmo.
– Uma cama! Uma cama quentinha! Um teto sobre nossas cabeças! É só o que eu pedi! E aí eu pergunto: É muito, produção?
– Eu quero ver vocês me sacanearem quando eu cantar Oswaldo Montenegro nas festas agora!
– Jamais! Eu nunca mais reclamo! – concordou Marcel. – Na verdade, acabei de me tornar o fã número um do Oswaldo! Se não fosse pela música dele, estaríamos mudos, assombrando em silêncio uma cidade nômade.
– Eu achei muito corajoso o que você fez! – disse Maeve, com olhos admirados para Lorena.
– Eu só cantei, meu bem! – riu Lorena. – Quem fez a maior parte foi o Pé de Vento!
  O rapaz abriu seu sorriso de galã, aceitando os elogios. E assim prosseguiram por metade do dia, quando pararam para comer e se esticar.
  E durante o almoço, regado a doações dos moradores da cidade repletos de gratidão, resolveram ter uma conversa com o casal rebelde.
– O que vamos fazer com vocês? – perguntou Marcel.
– Podemos acompanhar vocês! – disse Fergus. – Ir para onde estão indo, nos instalarmos, criar uma família!
– Cale a boca, Romeu! – ralhou Marcel. – O amor te deixou burro! Vocês são um para-raios de problemas! Quando o rei os encontrar, vai prender e enforcar qualquer um que esteja por perto, ainda mais se formos nós! Ele vai nos culpar por isso, será que não entendem?
  Maeve respondeu da única maneira que sabia. Chorando. As lágrimas desciam pelo rosto de porcelana e Marcos logo foi consolá-la.
– Pô, Marcel! Olha o que você fez! Você fez a Maeve chorar!
  Lorena sorriu para Marcel e disse que cuidaria disso. Então ela se virou para Maeve lentamente.
– Para de choradeira! – disse, firmemente. – Se é grandinha o bastante para fugir com o amor da sua vida, é bom aguentar o tranco! O amor não é para fracas, então pare com isso ou te dou uns tapas!
  Maeve parou imediatamente, olhando-a com olhos arregalados.
– Bem, precisamos resolver isso antes que os dois reinos entrem em guerra... – disse Lorena. – Uma guerra significa mortes, fome e muito desgaste. Não faz sentido isso acontecer por causa de um casal apaixonado.
– Se o filho do rei é gay, esse casamento não ia funcionar mesmo. E se nós colocássemos tudo em pratos limpos?
– Nós? – Marcel entrou na conversa. – “Nós” quem, cara pálida? Nós não temos nada a ver com isso!
– Agora temos, Marcel! – respondeu Lorena. – E vamos fazer o nosso melhor, OK?
  Marcel bufou. Detestava assumir problemas alheios e ali parecia que eles choviam.
  Então, combinaram levar o jovem casal para o Reino do Norte, depois que resgatassem Urbain. Daí seguiriam para a Colina dos Amores Perfeitos, último paradeiro que tinham de Bianca. Claro que muita coisa podia acontecer no meio do caminho para mudar seus planos...
  E aconteceu.
  Não viram quando os guardas surgiram. Ainda estavam comendo quando foram cercados e facilmente rendidos. Marcel ainda tentou pegar uma espada, mas uma flecha perto de sua mão o dissuadiu.
– Princesa Maeve! – disse o capitão, correndo para ajudá-la a se levantar. – Você está bem?
– Me solte, seu bruto!
  Os guardas tinham agarrado Fergus como um criminoso e ela correu e bateu neles até que o soltassem. A confusão no rosto dos guardas e, principalmente do capitão, era evidente.
– Estão apaixonados – resumiu Marcel. – Por isso fugiram. Queriam morar numa casinha de sapê com cerquinha branca e um cachorro saltitando na varanda.
  Os guardas se entreolharam.
– Não foi essa a informação que tivemos – explicou o capitão. – Mas isso não faz diferença. Nossas ordens são claras. Temos que levar vocês dois e quem estiver junto para o castelo.
Marcel se virou para Lorena com cara de “eu avisei”. E foram levados.

****
.Bianca andava na floresta berrando o nome de Zac. Colocou a mão na cintura, impaciente.
– Vamos lá! Apareça!
– Pra quê?
  Ela olhou para cima e o viu empoleirado num galho de árvore.
– Pra conversar! – explicou Bianca.
– Não tem o que conversar! – respondeu ele. – Você é humana e vai voltar pro seu mundo perfeito e levar sua vidinha perfeita! E eu ficarei aqui, sendo o que sempre fui!
– Zac! Para de se lamentar! Ainda temos chance! Vamos juntos até o Frabatto e ele nos dirá como fazer o pó funcionar!
– Não!
  Bianca arregalou os olhos e piscou várias vezes.
– Não?! Como assim não?
– Não é não! Chega de sonhar! Vamos nos contentar com o que temos e ficamos por aqui!
– Eu não acredito! Achei que você era mais...
– Quieta!
  Ela percebeu que ele estava atento a algo além deles. Num segundo, ele percebeu algo e saltou no chão, pegando-a pela mão.
– Os trolls estão aqui!
  Ele correu com ela pela mata e Bianca, numa rápida olhada para trás, viu os vultos se movendo atrás deles, escondendo-se em árvores. E para seu terror, eram muitos!
  Passaram por uma mata um pouco mais fechada e Bianca continuava ouvindo passos, saltos, grunhidos, cada vez mais próximos.
  A mata deu lugar a uma área de relva verdejante com um morro baixo logo adiante. Sem ter mais obstáculos como galhos, árvores e solo íngreme, eles aceleraram e correram ainda mais.
E foi quando, de repente, diante deles surgiu acima do morro, um exército de elfos e humanos. Diante deles, Asram em um cavalo branco dava um sorriso de vitória.
  Zac estancou, imaginando como Asram soubera. Logo imaginou que seus perseguidores trolls provavelmente não tiveram o mesmo cuidado que ele ao evitar voar, anunciando sua presença e denunciando a deles.
  Olharam para trás e um exército de trolls saiu da mata, correndo e saltando, fazendo chão tremer. Asram deu a ordem, encarando isso como um ataque. Talvez ele não soubesse que Zac não estava liderando aquele exército. Mas isso não mudava o fato de Zac e Bianca estarem agora entre dois exércitos inimigos. E o pior: ambos queriam suas cabeças.
  Bianca se virou para ele, os olhos brilhando, o coração aos saltos. Ele olhou em volta, procurando algum lugar seguro para ela, mas não havia como sair dali. Zac se virou para ela, balançando levemente a cabeça em desespero.
– Me perdoe... – disse ele. – Eu não queria que acabasse assim.
– Ainda não acabou! – disse ela, tentando fazer sua voz soar mais alta que os sons da guerra.
  Zac viu Kajinski liderando seus trolls contra o exército de Asram. A sua frente, Asram e seus elfos se aproximavam rapidamente com um grito de guerra. Os elfos chegariam primeiro, com pequena diferença. Então ele focou no inimigo mais urgente.
  Largou a mão de Bianca, deixando-a sozinha e lançou-se contra Asram. O impacto o lançou para fora do cavalo e os dois rolaram enquanto outros homens corriam.
– Você é muito abusado, troll!!! – gritou Asram. – Ousa me atacar com suas bestas sem inteligência?
  Somente então Zac percebeu que Asram e todos os seus homens achavam que ele estava liderando um ataque contra o reino.
– Pare o ataque, Asram! – gritou Zac. – Pare e eu me rendo agora!
Asram sorriu.
– E quem disse que eu quero sua rendição?
  Sacou a espada e partiu para cima de Zac.
  Bianca não sabia o que fazer. Ficou de frente para os elfos e humanos que corriam em sua direção, imaginando que sua vida estava chegando ao fim de uma maneira muito estranha. Ela não fechou os olhos, mas sentiu que a visão embaçou com as lágrimas que estavam subindo.
  Para sua surpresa, os soldados passaram direto por ela. Ela ouviu o som de espadas em carne, urros, porretes em cabeças. Virou-se e viu a cena dantesca de homens e elfos brigando com trolls. Matando alguns, ferindo outros, e os trolls reagiam com a mesma fúria, rasgando as gargantas dos soldados como se fossem tecidos velhos. Um troll derrubou um soldado e viu Bianca, de pé no meio daquela confusão, uma donzela de vestido vermelho e marfim esperando para ser trucidada, pois era conhecida a fama dos trolls em destruir coisas bonitas. Com um sorriso de satisfação em sua cara feia, o troll, munido de um porrete cheio de pregos na extremidade, andou na direção dela com um propósito nefasto. Um soldado surgiu entre eles e um golpe em seu peito o derrubou imediatamente. Bianca deu alguns passos trôpegos para trás, sem saber o que fazer para se defender daquilo. A criatura com mais de dois metros ergueu o porrete e o desceu com força. Bianca se encolheu, como se isso fosse minimizar o impacto. Sentiu um empurrão e ouviu um som metálico. Quando olhou, viu que alguém se colocara na sua frente e detivera o golpe com um escudo. Percebeu que esse alguém era o capitão que ela salvara do celeiro em chamas, aquele que os ajudara da primeira vez que ela e Zac estiveram no castelo de Asram e ainda não eram inimigos.
  O capitão deu vários golpes no troll e se defendeu de vários outros, até que conseguiu ferir sua perna e afugentá-lo. Com uma cara irada, o troll saiu de combate, deixando que outros assumissem seu lugar. O capitão se virou para Bianca.
– Fique perto de mim!
  Ela obedeceu. Viu uma espada caída no chão e a pegou. Era leve o bastante para que ela pudesse segurá-la e ficou perto do homem que acabara de salvar sua vida.
  Asram era muito hábil com a espada, mas Zac era muito ágil. Um dos golpes de Asram cortou Zac ao lado do abdome. Ele gritou e o sangue escorreu, fazendo o elfo sorrir. Os olhos de Zac brilharam e ele partiu para cima de seu inimigo. Uma garra conseguiu feri-lo no ombro, fazendo o elfo se desequilibrar e cair para trás.
  O capitão não parecia ter medo dos trolls que avançavam contra ele e continuava sua luta. Um troll pousou por trás dele. Bianca avisou e enfiou a espada em seu estômago. A fera gritou e voou para longe num voo meio torto.
A supremacia do exército dos elfos e humanos se fez clara quando Kajinski gritou uma retirada. Os trolls correram, mancaram, e saíram do campo, voltando para a floresta como podiam, largando os feridos à sua própria sorte. O capitão deu a ordem para continuarem a perseguição e logo uma onda de elfos, humanos, homens, mulheres, jovens e de meia idade, seguiu os trolls a caminho da floresta.
  Bianca imediatamente voltou sua atenção para Zac, que ainda brigava com Asram. O elfo caiu de costas no chão e Zac avançou nele com nada mais do que suas garras. Sua intenção era agarrá-lo e erguê-lo num voo para longe dali, onde o convenceria a desistir da guerra. Ou, ao menos, a deixar Bianca livre. Seus homens não arriscariam atirar flechas com a possibilidade de atingir seu príncipe.
  Assim que agarrou Asram pelos braços, este usou os pés para jogá-lo para trás. As asas se abriram, ajudando-o a manter o equilíbrio, enquanto Asram num salto acrobático se colocava novamente de pé. Num movimento rápido e gracioso como uma dança, Asram desenhou arcos perfeitos com sua espada, cortando Zac em três lugares. Uma no braço, outra perto das costelas e mais uma na perna.
Bianca correu até ele, vendo o sangue jorrar e gritando para que eles parassem.
– Sua defensora se metendo, como sempre – disse Asram. – Assim que terminar com você, darei um jeito nela...
  Talvez fosse o sangue se esvaindo de seu corpo, talvez fosse a ameaça à menina, mas algo fez os olhos de Zac brilharem e a fúria se manifestar como uma ventania abrupta que derruba árvores e arranca telhados. Zac avançou para Asram, desviando-se de seus golpes, até chegar perto o bastante para lhe dar um murro que tonteou o elfo. Na sequência, Zac lhe deu mais socos, até finalizar com um pontapé no peito que jogou o elfo para trás. Os homens de Asram perseguiam os trolls, deixando-o por sua conta, pois sabiam também que a honra os impediria de interferir, caso o troll estivesse vencendo de forma justa.
Quando caiu, Asram soltou a espada que caiu ao seu lado. Zac saltou em cima dele e apertou seu pescoço. O elfo se debateu, sentindo o ar faltar.
  A vida começou a se esvair, a visão começou a escurecer e ele se debatia ainda mais diante do olhar cheio de ódio de Zac.
  Bianca se atirou de joelhos perto deles, em desespero.
– Não faça isso, Zac! – implorou ela.
– Por que não? – rugiu ele. – Não há mais motivo, o pó não funcionou!
– Não é por isso! – insistiu ela.
– Ele é um monstro! – gritou ele.
– MAS VOCÊ NÃO É! – berrou ela.
  O olhar de Zac perdeu a fúria. Suas mãos então soltaram o pescoço do elfo que tossiu desvairadamente, procurando o ar que lhe fora roubado.
  Zac se levantou e então uma rede caiu sobre ele. Ao ver que o príncipe precisava de reforços, o capitão ordenou que retornassem. Assim que chegaram, viram Zac se levantando e usaram uma rede, algo que detém a grande maioria dos seres encantados. Desorientado, Zac caiu quando lhe acertaram com socos e murros e passou a ser espancado. Bianca gritou e tentou se meter no meio deles, para impedir o crime, mas era pequena perto de pessoas com armadura. Alguém a retirou.
  Eles iam matá-lo e ela já tinha passado por isso antes. Não ia passar de novo. Mordeu a pessoa que a segurava e se atirou em cima de Zac. Se iam trucidá-lo, então iriam ter que viver sabendo que trucidaram uma garota humana também. Talvez a sombra do remorso os fizessem parar.
  Seus planos foram frustrados quando alguém maior e mais forte a tirou de cima de Zac, que parecia imóvel sob a rede. Bianca se debateu e gritou, mas parou quando percebeu que não estavam mais espancando Zac.
  E havia um motivo.
  Uma luminescência violeta o envolvia por inteiro. Os homens se afastaram, achando aquilo estranho. Asram surgiu entre eles, também olhando aquilo que começava a se tornar uma bola de luz violeta, até que numa explosão, cegou a todos. Quando voltaram a enxergar, viram, imóvel, debaixo da rede, não um troll, mas um jovem humano.

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora