capítulo 39 O plano de Marcos

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  Pé de Vento foi inteirado da confusão em que estavam ainda no caminho. Assim que chegaram aos portões do castelo, alguém se aproximou de Fergus. Era um jovem guarda cujo uniforme diferia dos outros. Fergus reconheceu com surpresa o amigo que julgava que nunca mais iria ver.
– Edward?!
  O soldado pediu permissão para o capitão da guarda para falar com seu antigo capitão. A permissão foi concedida por cortesia e eles puderam falar por alguns breves minutos antes de entrarem no castelo e encararem o seu destino diante de um rei furioso e um príncipe meio que largado no altar.
– Achei que tinha sido levado como escravo! – disse Fergus.
– E fui! Um homem valente que foi vendido no mesmo dia que eu no mercado do submundo me ajudou a fugir! Voltei para cá, para saber se você tinha conseguido chegar a salvo com a princesa e o rei me incumbiu de ajudar no resgate dela, pois tinha sido sequestrada. Imagine minha surpresa ao saber que tinha sido sequestrada por você!
– Não a sequestrei. Mas fico feliz que esteja a salvo, amigo...
  O minuto de cortesia acabou e ele foi empurrado para continuar o caminho.
– Acha que vão nos prender? – perguntou Pé de Vento.
– Na melhor das hipóteses – respondeu Marcel, que parecia conformado com sua sina ou cansado demais para lutar contra o sacana do destino que vivia lhe passando a perna.
– Calma, gente! – disse Marcos. – Eu tenho um plano!
  Marcel revirou os olhos, lembrando como os planos de Marcos geralmente levavam a um problema ainda maior do que o que estavam tentando resolver.
Chegaram à sala do trono onde o rei do Norte, Conwal, aguardava com seu filho Boreas.
– Então foram vocês que se aproveitaram da minha confiança para sequestrar a noiva do meu filho? – disse ele.
– Não sequestramos a princesa! – respondeu Lorena com firmeza.
– Então, como explicam o que aconteceu?
  Todos engoliram as palavras, incluindo Maeve. Se a verdade fosse dita, Fergus perderia a cabeça ali mesmo e ela cairia em desgraça, ainda jogando o reino do norte contra o do sul. O que fazer então?
– Nós os encontramos e estávamos trazendo-os de volta! – respondeu Marcel.
– Então é verdade que o jovem capitão sequestrou a princesa! – confirmou o rei.
– Majestade! Eu gostaria de fazer uma petição!
  Todos olharam para Marcos, surpresos e preocupados. Marcos deu um passo à frente e falou com voz imponente.
– Nós lhe contaremos tudo! Mas antes é imperativo que eu possa falar um minuto a sós com seu filho.
  O jovem príncipe arregalou os olhos e o rei franziu o cenho.
– Para quê?
– Para lhe contar um segredo! – respondeu Marcos. – Ele é o noivo de Maeve, tem que ser o primeiro a ouvir o que tenho a dizer!
– Que segredo é este homem? – perguntou o rei, curioso.
– É um segredo que eu não ousaria falar para outros ouvidos, majestade, por honra, por moral, por... por loucuras a beira mar e insanidade ao sol poente, pois segredos nascem nos corações dos que ouvem e crescem como um kraken, destruindo sonhos e ideais nos dias das noites mais escuras e nas noites dos dias mais claros!
  Ninguém entendeu nada do que Marcos falara. Nem ele.
  O rei olhou para o filho que deu de ombros.
– Você tem um minuto – declarou o rei.
  Marcos fez uma reverência, agradecido. Dois guardas acompanharam Marcos e o príncipe para uma sala adjacente. Os guardas ficaram na porta do lado de dentro.
– E então? – perguntou o príncipe com o nariz empinado e braços cruzados, mesmo estando ele também curioso. – O que tem a dizer.
– Eu sei que você é gay! – disse Marcos.
– Sou o quê?! – o rapaz pareceu não entender.
– Eu sei que você gosta de homens!
  O rapaz imediatamente arregalou os olhos e suas bochechas pegaram fogo.
– Como ousa!... Eu vou faz...
– Mas seu pai não sabe de nada, o inocente! – continuou Marcos. – Senão ele não estaria tão animado com seu casamento com a Maeve.
– Seu... Seu...
– Cala a boca e me escute! Podemos fazer sua vida ser ótima e seu pai continuará sem saber, se nos ajudar!
  Dessa vez, o príncipe pareceu interessado.
– Diga.
– Você vai dizer que Fergus levou a princesa ao seu mando.
– Como?
– Porque você achou que ela não o amava. Fergus deveria ouvir tudo o que ela falasse e então contar pra você. No final, era só um teste de amor. Afinal, a moça vai reinar ao seu lado.
– Grande coisa o seu plano... Vocês se salvam, a princesa se casa, meu pai fica feliz, mas o que eu ganho?
  Marcos colocou o braço por cima do ombro do príncipe, segredando-lhe no ouvido as vantagens.
– Fergus e Maeve vão dever esse grande favor a você e em troca eles vão acobertar todos os seus namoros a partir de agora. Imagine, os dois serão seus cúmplices leais e manterão suas histórias não só para seu pai, mas também para toda a corte.
  O rapaz pensou um pouco, ainda não muito convencido.
– Você poderá viver o amor que quiser, meu amigo! E Maeve e Fergus poderão viver o amor deles também. Todos ficarão felizes. E então? O que me diz?
 
  Meia hora depois, Lorena, Marcos, Pé de Vento e Marcel estavam livres. O rei lhes agradeceu pelo serviço, oferecendo sua hospitalidade, mas eles queriam mesmo era ir embora. Pediram um momento com Maeve e Fergus, para se despedirem como foi da outra vez. Dessa vez, o príncipe foi junto, muito atencioso com sua amada.
  A sós, Marcos contou sobre o arranjo. Fergus se indignou. Maeve ruborizou. Marcel se espantou. Pé de Vento riu.
Um burburinho de protestos começou a se elevar, mas Marcos logo apresentou a todos a alternativa: suas cabeças rolando.
  O príncipe riu, mas Marcos não se esqueceu dele.
– E não ri não príncipe da Sapucaí, porque até a sua cabeça real vai rolar se o seu pai souber que você é fã da Lady Gaga!
  Ficaram em silêncio. E então, se despediram. Maeve chorou. Como chorava aquela menina! Mais de saudades de seus novos amigos do que por outra coisa. O príncipe se despediu de todos também, mais se deteve num abraço mais longo em Marcel, terminando com uma piscadela.
  E assim eles retomaram seu caminho, deixando, mais uma vez, o reino do Norte e do Sul com sua aliança de paz baseada num casamento arranjado mais falso que cenário de novela.
Assim que se afastaram, Marcel olhou com respeito para o amigo.
– Gostei de ver! – cumprimentou.
– Eu manjo dos paranauês! – sorriu orgulhoso Marcos.
  E apressaram os cavalos para chegarem à Cidade Obscura.

  *****

  Zac sonhava com uma canção. Não compreendia muito o que ela dizia, mas era doce e triste ao mesmo tempo. Os olhos pesados abriram com dificuldade e ele percebeu que sua cabeça repousava em algo macio e quente. Se levantou, sentindo todo o corpo doer.
– Você está bem?
  Ele viu o rosto de Bianca fora de foco. Piscou algumas vezes, a cabeça latejando. O rosto dela, que antes parecia um balão flutuando diante dele, agora assumia detalhes. Ela parecia preocupada.
– Oi... – respondeu ele.
– Como se sente?
– Como se fosse a seleção brasileira jogando contra a Alemanha na Copa de 2014... – respondeu ele, colocando a mão na cabeça.
  Ela riu e ele levou alguns segundos para entender o que ele mesmo dissera. E então ele entendeu. Arregalou os olhos e procurou pelas grandes asas de morcego. Então tocou suas orelhas, percebendo que não estavam mais pontudas. Sorriu, incrédulo, para a moça.
– Funcionou!
– Funcionou! – concordou ela.
  Ele riu e logo parou com um gemido.
– Au! Tudo dói!
– Os homens de Asram te deram uma tremenda surra... – explicou ela. – Covardes...
  Bianca contou que os homens paralisaram quando o viram se transformar em humano. Mesmo assim, Asram deu ordem para que o matassem, mas o capitão Arland não permitiu. Era um humano e merecia um julgamento. Era a lei. Asram concordou. Aparentemente, não tinha muita opção. O capitão era bem quisto e respeitado por ser um homem justo, se entrassem em desacordo, havia uma grande chance dos homens ficarem ao lado dele. Também não pegava bem matar um garoto desacordado que parecia ter sido vítima de algum feitiço. No fim das contas, foram jogados na cela e desde então, horas se passaram e nada acontecera.
  Bianca lhe fez uma carícia nos cabelos escuros.
– Como se sente?
  Ele fechou os olhos e então sorriu.
– Eu me lembro de tudo... Da sorveteria... Do cinema... De você metendo um bolinho na minha cara...
Ela abriu um sorriso de felicidade pura e plena.
– E também me lembro de ter asas e de ter caminhado com você nesse mundo... Parece que foi ontem!
  Então ele franziu o cenho, como se algo não se encaixasse.
– Não faz sentido... – disse ele.
– O que não faz sentido?
– Eu me lembro de... ter morrido. E então me lembro de ter vivido uma vida humana completa. Me lembro do acidente dos meus pais, do meu irmão, do nosso apartamento...
– Isso é ótimo! – comemorou ela.
– Você não entende? – tornou ele. – Como seria possível eu ter vivido essa vida humana ao mesmo tempo em que era um anjo?
  Bianca entendeu o que o preocupava.
– Me disseram que o tempo é fluido aqui – respondeu ela. – Talvez os anjos possam...
– Talvez não seja verdade...
  Ela não entendeu e balançou a cabeça levemente. Ele olhou para ela de novo.
– Somos nossas lembranças... Acho que eles me mandaram de volta com lembranças de um passado que não tive, mas que precisava para ser um humano.
– Isso quer dizer que...
  Ele pareceu meio perdido.
– Não sei... Talvez seja loucura minha. Ou talvez eu não tenha vivido tudo o que acho que vivi.
– Eu vi fotos suas de criança.
– Anjos podem fazer isso. Eu me lembro de vê-los mudando vidas simplesmente mudando lembranças das pessoas.
  Bianca olhou para o nada por um momento.
– Zac...
  Ele olhou para ela de novo.
– Isso realmente importa?
  Ele ficou parado um segundo. Então abriu um grande sorriso.
– Na verdade, não!
  E se inclinou para dar um beijo nela. Quando seus lábios se separaram, ele colou sua testa com a dela, acariciando seus cabelos.
– Obrigado por não desistir de mim...
  O som de chaves e passos os fez se prepararem. Alguém estava vindo.
  Bianca ficou aliviada ao ver o capitão com mais um guarda. Dessa vez, Zac se lembrava dele. Ele trazia dois pratos de comida e bebida. Abriu a porta e entregou para eles, que começaram a comer. Estavam com muita sede e fome.
– Obrigada! – disse Bianca, com a boca cheia. – Não só pela comida, mas por ter me protegido na batalha e por ter intercedido por Zac.
  O capitão aceitou o agradecimento com um movimento de cabeça.
– Infelizmente, não sei se poderei fazer isso de novo.
  Eles o olharam preocupados.
– O príncipe quer executar vocês dois.
Bianca se engasgou e precisou tomar um copo de água.
– E qual a acusação? – perguntou Zac.
– Traição. Ele alega que vocês estão trabalhando com os trolls e que Zac se transformou em um deles por meio de alguma feitiçaria.
– Não fizemos nada disso! – reclamou Bianca. – E Asram não deveria poder fazer nada! Ele é o príncipe! Não é o rei! Cadê o rei Oldebaran e a rainha Nístika?
– Ainda não voltaram e enquanto estiverem fora, é o príncipe que dá as ordens. Mas eu não concordo com o que ele está fazendo. Exigi um julgamento justo para vocês. Será amanhã pela manhã. Se conseguirem provar sua inocência, estarão livres. Mas se não conseguirem, a sentença será aplicada imediatamente. Eu desejo sorte a vocês.
  O capitão se retirou, juntamente com seu guarda, deixando os dois sozinhos com a sombra de uma lâmina a pairar sobre suas cabeças.

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora