capítulo 30 às vezes, as escolhas são poucas

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  A surpresa de ver suas mãos como as de um humano fez o rei passar alguns minutos apenas as observando, como se não acreditasse no que seus olhos viam.
– Eu lhe disse! Você é um humano!
Ele olhou para ela.
– Você tem um estranho efeito sobre mim.
  Ela sorriu, feliz.
– Não sei se isso é bom!
  Ela desfez o sorriso.
– Meu conselheiro, Kajinski, acha que você faz parte de algum tipo de ilusão.
O nome soou algum sino na cabeça de Bianca.
– Kajinski? – perguntou ela. – Eu conheço esse nome! Lembrei!!! Era o troll esquisito que mandou te sequestrar e tentou te manipular como rei!
  Como já tinha ouvido a história toda, ele sabia do que ela estava falando, mas isso também poderia ser um truque.
– Precisamos do pó do espelho das armas.
– Almas!
– Isso – continuou ele. - Mas não sei se mandar algum troll será seguro. Kajinski já mandou um dos meus trolls te matar. E esses trolls são uns estúpidos!
– E se nós fôssemos lá buscar o pó?
  Aquela ideia pareceu surreal pela expressão do rosto dele.
– Não podemos!
– Claro que podemos! Você é o rei! Você pode qualquer coisa! – insistiu Bianca. – A menos que você tenha alguma coisa mais importante na sua agenda...
– Eu ia invadir o castelo de Asram! – lembrou ele.
  Bianca arregalou os olhos e o pegou pelos ombros.
– Zac, pelo amor de Deus, colabora!!! Você não pode matar ninguém!
  Se você derramar sangue, se tirar a vida de alguém, ficará preso nessa forma por toda essa vida!
– Preciso pensar em tudo isso... – disse ele, saindo.
  Bianca foi atrás, mas ele a impediu.
– Você fica aqui.
– Por quê?
– Porque é muito difícil pensar com você por perto.
  E saiu, deixando Bianca sozinha de novo.

  Caminhou pelos corredores escuros até achar a saída da colina encantada. Voou pelo céu escuro onde a lua imperava. Olhou as montanhas ao longe, o brilho de pequenas fadas fazendo danças em círculos em uma colina, as florestas que ganhavam um tom azulado com a lua. Tudo aquilo lhe parecia familiar, mas distante. Ele sentia falta de alguma outra coisa, de algum outro lugar. Se a humana estivesse certa, ele poderia ser outra coisa, algo além de um troll cheio de ódio e rancor. Ele olhou na direção do castelo de Asram. Naquele momento, não tinha mais tanta raiva dele. Não a ponto de começar uma guerra. O que mudara?
  Olhou para suas mãos e viu unhas comuns.
  Voou ainda mais alto, sentindo que aquilo fazia parte dele tanto quanto respirar. Passou por rios e planícies, até chegar à Colina dos Amores Perfeitos. Pousou no alto de uma torre do castelo. Estava escuro e ele estava sozinho. Não foi difícil passar despercebido. Cercou a torre, procurando uma entrada.  Esquivou-se de um guarda que estava concentrado no que pudesse vir lá de fora. Deu a volta pelo outro lado e andou silenciosamente pelo telhado que ligava uma torre a outra. Esquivou-se de mais um guarda e finalmente achou uma janela. Não uma janela qualquer, mas a janela da qual ele precisava.
  O luxuoso quarto estava na escuridão. Já era muito tarde e elfos, assim como humanos, não tinham hábito de trilhar os caminhos da lua. Zac se aproximou da cama onde Asram dormia. Poderia terminar com tudo ali mesmo.
  Asram acordou com uma mão tapando sua boca. Debateu-se assustado como qualquer um que fosse acordado dessa maneira. Viu Zac diante dele fazendo um sinal de silêncio com uma mão enquanto tapava sua boca com a outra.
– Não vim machucá-lo! – disse Zac. – Só vim conversar.
  Vendo que Asram parara de se debater, embora mantivesse o ar desconfiado, Zac retirou a mão.
– Você é burro ou louco? – perguntou o elfo.
– Os dois, eu acho. Eu vim conversar sobre essa guerra.
– Guerra que você começou! – acusou Asram. – Atacando minhas plantações e comprometendo a alimentação do reino!
– Eu comecei?! – indignou-se Zac. – Você começou quando nos traiu! Quando me torturou para conseguir o que já era seu! Olhe no que eu me transformei! Eu sou fruto de sua ambição desmedida!
– Você só se transformou no que já era por dentro! – respondeu Asram, aumentando o tom de voz. – Uma vez um monstro, sempre um monstro!
  Zac não respondeu. Não podia dizer o quanto aquelas palavras o feriram.
– Eu vim pedir que suspendêssemos essa guerra... – disse, com voz rouca. – Mas estou vendo que isso não é possível...
  Asram se inclinou para ficar mais perto dele.
– Eu vou destruir você e todos da sua raça. Vocês são a corrupção desse mundo. Nada de bom pode vir de coisas como você! Volte para seu covil, abominação, e aproveite seus últimos momentos! GUARDAS!
  Zac teve vontade de estrangulá-lo ali mesmo, mas não o fez. Virou-se e saltou pela janela no instante em que a porta do quarto se abriu com guardas entrando correndo.
  Ainda lançaram algumas flechas, mas nenhuma nem passou perto. Ele saiu incólume. Ou quase. Seus olhos brilhavam com lágrimas que o vento secava na fonte.

 
  Voou de volta à colina encantada onde a Corte Unseelil se reunia. De longe, era apenas uma grande colina, mas se soubesse onde, poderia encontrar a porta e veria um outro mundo acontecendo lá dentro.
  Ele voltou aos seus aposentos onde Bianca estava. Ela estava dormindo e ele se aproximou dela com cuidado. Tirou uma mecha do seu rosto e ela acordou. Sorriu ao vê-lo, achando que iriam partir para encontrar Analice e Bran. Mas ele a segurou.
– Vou mandar escoltá-la para fora daqui.
– O quê? – ela ergueu o tronco, recostando-se na parede onde tinha um tapete pendurado atrás da cama no lugar da cabeceira.
– Eu pensei no que você disse – continuou ele. – Eu gostaria de ser outra pessoa. Mas não sou. Eu reuni esses trolls, eles dependem de mim. Eu prometi uma guerra e é uma guerra que eles vão ter.
  Ela pegou a mão dele e não viu garras.
– Eu sei que Asram machucou muito você – disse ela. – Mas essa vingança está destruindo você, não ele.
– Não é pela vingança – respondeu ele.   – Nem por Asram.
– Então por quê? Eu não entendo!
  Ele tentou achar as palavras certas.
– Porque eu não aguentarei se você estiver errada.
  E então ele saiu de novo.
  Bianca ficou desolada. Não sabia onde tinha errado e, pior, não sabia mais o que poderia fazer.
 
  Zac se dirigiu até um grande salão onde ele reunia os trolls para os pronunciamentos. Foi melhor deixar qualquer esperança de ser outra coisa além do que era para trás. Agora poderia continuar com sua vida e com seus planos. Ouviu um burburinho seguido de silêncio. Estranhou e se aproximou do salão com cuidado. Alguém estava fazendo algum discurso. Se escondendo nas sombras, observou com cuidado. Era Kajinski. E estava fazendo um discurso bastante inflamado.
– Nosso rei foi corrompido pelos humanos! – dizia ele. – Nós tentamos trazê-lo de volta, mas era tarde demais. O sangue humano já o dominou. Mas ele cumpriu sua missão nos reunindo aqui e mostrando quem são nossos inimigos e qual é a nossa força!
  Os trolls urraram em aprovação.
– Agora, é hora de tomarmos uma posição, irmãos! – continuou Kajinski. – Precisamos destruir a sombra humana que paira sobre nós! Há uma humana nos aposentos do rei! Iremos lá e a destruiremos! E se ele ficar no nosso caminho, saberemos de que lado ele está!
  Mais urros de aprovação. O rei saiu dali e correu, ainda ouvindo Kajinski pedindo que os trolls o aceitassem como seu rei.
  
  Bianca ficou sem saber o que fazer depois que ele saiu. Sentou-se no degrau perto do que parecia um trono e ficou lá, com o coração apertado, se sentindo sozinha. Sentiu lágrimas subirem e achou que ia quebrar, desmoronar ali mesmo, não só por aquilo, mas por tudo de errado que estava acontecendo. Então fechou os olhos e respirou fundo. Tudo tem solução. Mas não podia entrar em pânico. Já estivera em situações desesperadoras antes, e conseguira sair, porque não entrou em pânico e não desistiu.
  Abriu os olhos. Não ia desistir. Era filha de Urbain e Lorena. Aquelas duas pessoas desafiaram as leis do tempo para se encontrarem. Ela mesma podia ser considerada uma pessoa impossível de ter acontecido. E, no entanto, ali estava ela, num mundo que a maioria das pessoas acredita ser pura fantasia.
  Se Zac não queria ir atrás do pó do espelho das almas, ela iria. Ele ia soltá-la de qualquer forma. Imploraria a ele que não matasse ninguém até que se encontrassem de novo e iria atrás do raio do pó que ela fez o favor de deixar para trás num descuido idiota.
  De repente, Zac entrou correndo e pegou o manto negro que ela encontrara e a bolsa, entregando tudo para ela.
– Temos que ir agora! – disse ele, puxando-a pelo braço.
– O que houve? – perguntou ela, sem entender nada.
– Se não formos agora, vão matar nós dois!

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora