capítulo 22 É preciso ir

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  Urbain não era um assassino e ele sabia disso. Porém, naquele momento, se arrependia muito, muito mesmo de não ter dado um fim em Galdrun. Perguntava-se onde estava o outro. Estava de novo dentro de uma carroça, uma outra, mais reforçada, e dessa vez estava bem preso. Abriram sua boca e forçaram a frutinha vermelha. Tentou não engoli-la, mas foi em vão.
– O prejuízo que você causou foi tão grande que agora terei que dar um jeito de você compensá-lo.
  Galdrun trocou palavras com os outros homens. Urbain se debateu inutilmente, fazendo as correntes tilintarem. Se perguntava como não vira os homens chegando, como não pressentira o perigo. Ao menos, Bianca e Analice estavam a salvo. Torceu para que Bran as protegesse. Agora, infelizmente, ele não lhes seria muito útil. Seus olhos pesaram e ele sentiu que a frutinha do diabo estava fazendo efeito. Esta carroça não tinha frestas e ele estava na total escuridão, totalmente sozinho. Percebeu que não conseguiria lutar contra o efeito do sonífero e acabou por apagar de vez.

***** 
  Caminharam por cerca de meia hora pela floresta, falando pouco, pois cada um estava concentrado em encontrar uma solução para o problema premente. Bianca tentava se agarrar ao momento de iluminação que teve no riacho. Mas conforme adentrava a floresta, seu coração tremia com as más notícias. Eileen havia morrido. Seu pai fora capturado. E ela estava muito longe para ajudar Zac. Lembrou do que sua mãe lhe dissera quando achou que seu mundo estava acabando.
“Confie um pouco mais, querida. Coisas incríveis acontecem o tempo todo”.
Mas como confiar com tanta nuvem negra acima de nós?
  – Eu tive uma ideia! – disse Analice, de repente.
  Os dois pararam e esperaram que ela contasse.
– Bom, precisamos de um círculo de fadas, certo? Mas não sabemos onde tem um. Nem para onde ele vai. Porém, se achássemos uma fada, ela poderia nos dizer!
– Tenho olhado para ver se encontro uma entre as folhas – disse Bran, – mas não estou encontrando nenhuma.
– Essa é a minha ideia! – interrompeu Analice. – Vamos atraí-las!
– Como? – perguntou Bianca.
– Fadas gostam de coisas bonitas e tudo relacionado à arte. Podemos fazer algo que as atraia, como dançar, cantar, declamar uma poesia...
  Bran parecia meio cético quanto ao plano, mas foi minoria. Assim, Bianca resolveu tentar cantar Blue Moon.
  Nada aconteceu.
  Analice fez seu número de dança com uma música imaginária.
  Nada aconteceu.
  Viraram-se então para Bran, que permanecia de braços cruzados, vendo aquela papagaiada.
– Não vou fazer isso.
  Se você for um rapaz e tiver amigas mulheres, ou mesmo irmãs, sabe como elas são convincentes quando usam argumentos inteligentes, como bater os pezinhos e fazer bico. Foi o que Bianca e Analice fizeram, convencendo finalmente Bran, que, a contragosto, recitou uma poesia sem muita vontade e não muito alto.
  – “Quanto mais fecho os olhos, melhor vejo...
Meu dia é noite quando estás ausente...
E à noite eu vejo o sol se estás presente...”
Ficaram esperando alguma coisa e...
Nada aconteceu.
– Viu? Eu disse que isso não ia funcionar! Fadas são muito espertas.
– Que bonita essa poesia! – disse Analice. – Você que fez?
– Não, é de Shakespeare.
– Shakespeare? – estranhou Bianca. – Como pode isso?
– As obras verdadeiramente inspiradas dos humanos sempre chegam até aqui.
  Uma vegetação mais fechada próxima deles se mexeu, colocando-os em alerta. Seriam as fadas? Ou seria outra coisa?
  Do meio da vegetação, uma donzela surgiu. Tinha as feições finas e delicadas e um lindo vestido de brocado cor de rosa. Logo atrás dela surgiu um jovem de belas feições e olhos surpresos. O trio se deparou com o casal e ficaram todos se encarando paralisados.
– Vocês são fadas? – perguntou Bianca. – Porque não parecem fadas.
  O rapaz imediatamente se colocou a frente da moça e ergueu a espada. Bran imediatamente fez o mesmo.
– Quem são vocês? – perguntou o rapaz. – E o que querem?
– Quem são vocês? – devolveu Bran. – E por que estão aqui?
– OK, rapazes! – interrompeu Bianca, ficando entre as duas espadas erguidas.  – Vamos dar um tempo nessa festa de testosterona e agir como seres inteligentes! Baixem suas armas.
  Houve hesitação entre os dois, até que Bianca gritou:
– AGORA!
  Eles baixaram as espadas e Bianca falou primeiro.
– Eu sou Bianca. Este é Bran e aquela é Analice. Estamos tentando chegar na Colina dos Amores Perfeitos e tentávamos atrair fadas para que nos mostrassem um círculo de fadas que pudesse nos levar lá mais rapidamente. Sua vez.
– Meu nome é Fergus e esta é...
  O rapaz pareceu hesitar e a moça passou a sua frente.
– E eu sou Maeve. Lamento nossa apresentação desastrada, mas há perigos por toda parte hoje em dia...
– Estão sozinhos? – perguntou Fergus, olhando desconfiado em volta.
– Estamos! – respondeu Bianca, um tanto rápido demais.
– Estamos indo na mesma direção – disse Fergus. – Se importariam se acompanhássemos vocês?
  O trio se entreolhou e concordou. Assim, retomaram o caminho agora com dois estranhos.
– Por que suas roupas estão do avesso? – perguntou Maeve.
– Ah, é! – respondeu Bran. – Tínhamos nos esquecido.
  Eles contaram sobre o ataque dos springgans, o que pareceu horrorizar a moça. Analice logo notou que os dois andavam de mãos dadas e sorriu, imaginando que eram um belo casal.
– Há quanto tempo estão juntos? – disparou Analice.
  Imediatamente, eles soltaram as mãos e pareceram um gato pego com a boca cheia de penas e a gaiola vazia.
– Não estamos... digo... Somos... – Fergus não conseguia falar.
  Bianca e sua sutileza de trator terminou o serviço que Analice
começara.
– Vocês não deveriam estar juntos, né?
  Fergus e Maeve se entreolharam assustados e eles juraram que aqueles dois iam sair correndo com as mãos para cima naquele exato instante. Mas eles apenas olharam de volta com aquela expressão de quem não tem a menor ideia do que dizer.
– Tudo bem! Fiquem calmos! – disse Bianca. – Se vocês se amam, podem contar conosco para ajudarmos no que pudermos.
  Eles sorriram, mas não falaram mais sobre o assunto, voltando a perguntar sobre os springgans e sua brilhante fuga. Com a fome e o cansaço começando a fazer o papo murchar, decidiram parar e comer um pouco.
Maeve e Fergus dividiram com eles alegremente o que tinham. Bianca, Bran e Analice colocaram pães, queijo e bolo que Frabatto lhes dera e perceberam a grande diferença entre os alimentos que eles tinham e os alimentos que Maeve e Fergus traziam. Os deles eram finos bolinhos decorados, tortas salgadas douradas e frutas belíssimas. Aqueles alimentos pareciam ser muito delicados e finos. Pareciam ser caros! Analice já tinha reparado na roupa de Maeve e começou a desconfiar que ela era uma nobre. Já Fergus, apesar de um rapaz lindo, tinha roupas simples, muito parecidas com as roupas de um guarda ou soldado. Analice preferiu não comentar nada, mas Bianca não se importava em ser inconveniente.
– Você é rica? – perguntou Bianca. – Está fugindo com ele porque ele é pobre e seus pais ricos não aceitam o casamento?
  Bran riu. Analice olhou para o nada, imaginando porque ainda se dava ao trabalho de ser discreta se sua amiga fazia tudo para derrubar todos os talheres e pratos num restaurante.
– Podemos confiar em vocês? – perguntou Maeve.
– Claro! – respondeu Bianca, comendo um pedaço de bolo.
– Sou a princesa Maeve do Reino do Sul, herdeira do trono do Fogo, filha do Rei Augustus e da Rainha Maura. Fui prometida para o filho do Reino do Norte, mas me apaixonei por Fergus, que era o capitão da guarda que liderava a comitiva que estava me levando. Então, hoje, nós decidimos fugir!
– Oh, uma história de amor! – disse Analice. – Peraí... – preocupou-se Bran.  – Então vocês dois estão sendo procurados?
– Bem... – titubeou Maeve com um sorriso amarelo. – Talvez!
  Bran se levantou.
– Se formos pegos com eles, seremos todos presos!
– Mas nós não fizemos nada!!! – reclamou Bianca, ainda com a boca cheia de bolo.
– Não interessa! – continuou Bran. – Vão nos acusar de cumplicidade! Ou de sequestro! E aí pode esquecer de ajudar o Zac!
– Quem é Zac? – perguntou Maeve, como se isso fosse de alguma forma relevante.
– O rei dos trolls! – respondeu Analice.
  E aí foi a vez de Fergus se levantar apreensivo.
– Vocês estão ajudando o rei dos trolls?!
– Não é o que parece! – disse Bran.
– Tudo bem, isso foi um erro! – Fergus começou a arrumar suas coisas e ajudou Maeve a se levantar. – Sigamos nosso caminho, vocês seguem o de vocês!
  Bianca e Analice se levantaram também.
– Calma, gente! – disse Analice. – Tenho certeza de que podemos nos entender.
  Sem dar tempo para maiores explicações, Fergus e Maeve partiram.
Bianca colocou as mãos na cintura e se virou para Bran.
– Pô, Bran! Você é um grosso!
– Estou tentando nos manter vivos! – explicou o elfo. – E isso está ficando cada dia mais difícil!
  Bianca sentou emburrada e continuou a comer, porque não era qualquer coisa que lhe tirava o apetite.
Assim que terminaram o lanche, e Bianca e Analice ficaram felizes por Fergus e Maeve terem deixado os bolinhos e a quiche de queijo que estavam divinos, se levantaram e continuaram a andar.
  A tarde ia embora, a noite se aproximava e Bran se preocupou.
– Precisamos de um lugar para passar a noite... – disse ele.
– Precisamos é de um milagre! – reclamou Bianca. – Você disse que levaremos cinco dias para chegar lá. Em cinco dias o Zac já matou toda a torcida do Flamengo!
– Matou quem? – perguntou Bran.
– Um monte de gente! – traduziu Analice.
– Eu não sei o que podemos fazer a respeito, Bianca! – defendeu-se Bran. – Mas aceito sugestões!
  Bianca caminhou, vendo o dourado do sol se transformando em laranja, sentindo o tempo escorrer pelos seus dedos.
– Precisamos arrumar algum lugar para dormir, não podemos andar por aí de noite, é muito perigoso – insistiu Bran.
– Eu só queria um jeito de chegar logo e pelo menos avisar Zac que ele não pode matar ninguém!
  Bianca olhou para o sol, começando seu caminho de despedida.
– Uma pena eles terem ido embora... – lamentou Bianca. – Fergus e Maeve poderiam ajudar.
– Ajudar como? – respondeu Bran. – Atraindo uma legião de soldados para cima de nós?
– Não, seu grosso! Talvez tivessem alguma ideia sobre atrair fadas!
– Estavam tão apaixonados! – comentou Analice.
  E então Bianca teve um lampejo. Virou-se para eles com um sorriso de vitória.
– É isso!!!
– Isso o quê?
– Nós fizemos tudo errado! Não basta recitarmos uma poesia, ou cantarmos, ou dançarmos. Temos que fazer isso com amor! Com sentimento, com emoção! Temos que emanar amor! Aí as fadas aparecem.
  Analice e Bran não pareciam muito convencidos, mas o que tinham a perder?
  Bianca via o crepúsculo e sentia que aquele era o momento.
– Melhor então colocarmos as roupas direito – lembrou Bran. – Roupas do avesso podem ofender as fadas.
Cada um foi para um canto mais oculto na mata e desviraram suas roupas. Quando voltaram, Bianca esfregava as mãos animada.
– Vamos conseguir! Só precisamos escolher o que vamos fazer e fazer com o coração.
  Bianca ficou em silêncio. Ela já cantara pela sua vida e pela de Zac e sabia que não podia ser qualquer música. Tinha que ser uma música que tocasse o coração. O dela e o dos outros. Portanto, tinha que ser algo que ela estivesse sentindo naquele momento.
  Bran e Analice esperaram enquanto Bianca buscava dentro de si a canção certa.
– Como vamos saber se deu certo? – sussurrou Analice, tentando não atrapalhar a amiga.
– Dizem que um vento precede as fadas – explicou Bran.
  Então Bianca levantou a cabeça decidida.
– Eu vou cantar... – disse ela. – E vocês dois vão dançar.
dançar.– Como assim? – perguntou Analice, meio nervosa. – Juntos?
– É!
  Bianca foi até eles e os colocou juntos.
– Fadas gostam de casais. E no momento, eu não sou um casal. Sou uma coitada solitária apaixonada por um troll que deve beber, fumar e bater em todo mundo. Vocês vão completar a canção, vão torná-la verdadeira!
– Mas...
– Mas nada! Dancem!!!
  Então ela voltou para um ponto onde o sol banhava tudo de dourado e laranja. Respirou fundo. Achou o tom e então cantou. Era uma música antiga, uma das favoritas de sua mãe, uma canção em inglês de uma banda progressiva do Reino Unido dos anos 70 chamada Renaissance. Bianca sempre desafinava quando a cantava, mas ia se esforçar para não desafinar ali. Precisava da ajuda das fadas. Olhou em volta mais uma vez, vendo Analice e Bran juntos como duas vassouras. Esperava que eles relaxassem e não estragassem tudo. As árvores se moviam lentamente, o sol jogava sobre tudo caminhos dourados, as folhas de início de outono no chão pareciam um tapete e as folhas tinham uma miríade de tons de verde. Era o cenário perfeito. Bianca achou que seria uma ótima sequência de uma animação da Disney, se não estivessem tão desesperados. Bianca fechou os olhos, concentrou-se e deu o seu melhor. Apesar das palavras serem em outro idioma, Bianca sabia o que cantava e isso parecia fluir com sua voz:

Dando um tempo para encontrar o verso certo Falando calmamente com os pensamentos que você quer dividir Inclinando-me, eu sinto você crescendo em minha mente Descendo furtivamente, eu sinto você crescendo em minha mente

  Bran e Analice começaram se mover, nitidamente constrangidos. Bran lutava com todas as suas forças para não cavar um buraco no chão e se enfiar nele. Analice tinha deixado claro que não tinha nenhum sentimento por ele e colocá-lo naquela situação era cruel. Teve vontade de estrangular Bianca, mas ela parecia não perceber – ou não se importar – com a situação vergonhosa em que eles se encontravam. Continuava cantando.

É preciso ir devagar, levando o amor na única direção É preciso apenas deixar fluir, fazendo amor e dando tempo para ele crescer

Encontrando maneiras de achar o verdadeiro você Passando dias apenas de mãos dadas e se sentindo livre Brinque e veja o sol vindo e atravessando tudo Venha comigo, fique por perto e veja o amor crescer com você.

  Em algum momento, não havia mais para onde desviar o olhar. Bran terminou encontrando os grandes olhos de Analice e ela não os desviaram. E então seus corpos, tensos e sem ritmo, encontraram a fluidez da canção, movendo-se lentamente, belamente, livremente. Dançar é uma expressão de liberdade, mas dançar com alguém é uma prova de confiança. Naquele momento, descobriram que confiavam um no outro.
   Bianca sentia as palavras nascerem no coração e se espalharem por entre as árvores. Balançava o corpo dançando com o acompanhamento imaginário e sorriu, sabendo que estava conseguindo tornar sua canção sincera, como fizera quando cantara para os grifos de Paralda.

É preciso ir devagar, levando o amor na única direção
É preciso apenas deixar fluir, fazendo amor e dando tempo para ele crescer
Dando a você o amor que você me deu  Vivendo o amor com as coisas que nós temos para compartilhar
   Poesia, ouça as palavras que você diz para mim Fique por perto, aqui comigo, mantenha nosso amor fluindo livremente.

  Um vento balançou as árvores e elas derrubaram pequenas flores amarelas sobre eles. Bran e Analice continuavam sua dança, presos um nos olhos do outro. Pássaros cantaram e o sol pareceu retardar sua partida para vê-los.

  É preciso ir devagar, levando o amor na única direção
  É preciso apenas deixar fluir, fazendo amor e dando tempo para ele crescer 

  E então um pequeno ser alado de cor viva voou diante de Bianca.
  Outros mais surgiram e cercaram Bran e Analice. Surpresos, eles pararam e sorriram, percebendo que o plano funcionara.

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora