capítulo 28 Humanidade

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  O rei voltava para seus aposentos quando deu de cara com Kajinski batendo boca com os guardas na frente do seu quarto.
– Majestade! – disse Kajinski, fazendo uma reverência breve. – Esses idiotas não me deixam entrar em seus aposentos!
– Eu sei – respondeu secamente de braços cruzados. – Foram ordens minhas!
  Kajinski observou que os olhos de seu rei estavam diferentes. Observou as garras em suas mãos, mais claras, mais parecidas com unhas.
– Podemos falar, majestade? –perguntou Kajinski, abaixando a cabeça.
– Devemos! Mas não aqui. Venha.
  O rei saiu e Kajinski ainda deu uma última olhada para a porta fechada, com a certeza do que ela guardava.
  Caminharam pelos corredores iluminados por archotes nas paredes.
– Soube que Jurubin voltou... – comentou Kajinski.
– É, ele voltou.
– E trouxe o que vossa majestade pediu?
  O rei o olhou de lado, deixando clara sua desconfiança.
– Trouxe.
– E os outros? Task e Boldan? Não voltaram ainda?
– Não.
  Chegaram a uma porta de madeira escura que o rei abriu. Entraram e era uma sala de reuniões no mínimo peculiar. Tinha uma grande mesa de madeira rústica no meio. Os pés eram troncos de árvores. Havia pedaços de tronco que serviam como cadeiras e um mapa carcomido pendurado na parede, acima de uma cadeira melhor talhada e mais imponente.
– E nem vão voltar.
  Kajinski olhou surpreso para o rei que o olhava nos olhos.
– Estão mortos.
– Mas isso é...
– Você mandou Boldan matá-la.
  Kajinski engoliu o resto da frase e paralisou. O rei continuava olhando para ele, talvez esperando uma resposta, embora aquilo não tivesse sido uma pergunta.
– Mandei, majestade...
  Kajinski baixou a cabeça. Viu que não poderia mentir. O rei não era um apatetado desmiolado como a maioria dos trolls. Ele já sabia e tentar ocultar a verdade só iria piorar a situação.
  A aparente calma do rei desapareceu de repente e ele bateu na mesa e gritou.
– Mesmo que eu tenha dado ordens expressas para não feri-la!!!
– Mas foi para o seu bem, majestade... – continuou Kajinski.
  O rei avançou para cima de Kajinski, as asas abertas como a sombra da morte. Suas mãos encontraram o pescoço de seu conselheiro, imprensando-o em cima da mesa.
– Você pensa que eu sou seu brinquedo?! Acha que pode me desafiar assim?!
  E Kajinski viu novamente os olhos do rei brilharem do jeito que ele queria.
– Essa menina será sua perdição, majestade! – disse Kajinski, se engasgando. – Ela o leva para um mar de ilusão, tentando fazê-lo ser o que não é!
  O rei largou o pescoço do conselheiro e viu que suas unhas estavam mais uma vez escuras. Kajinski tossiu e foi se levantando devagar.
– Essa é a sua natureza... – disse. – Por que quer renegá-la?
  O rei se afastou, ficando de costas para ele. Kajinski caminhou lentamente até o mapa.
– Este é o mapa do tempo de seu pai. A Corte Unseelil tinha domínio por todas essas regiões. Todos nos temiam e podíamos pegar o que quiséssemos de qualquer um. Podemos voltar a ser como antes! Só depende de você, Zayn.
  Aquele nome fez a cabeça de Zac girar. Ouviu aquele nome muitas vezes. Olhou para a cadeira que ostentava alguns entalhes. Sentou-se no degrau ao pé dela e passou a mão no entalhe onde trolls levavam um homem pelos ares. Viu a si mesmo como um ser pequeno, sentado ao pé da cadeira onde seu pai dava ordens. Na frente dele, trolls riam e falavam sobre já terem o pagamento para o dízimo. Saiu de seu devaneio com a voz de Kajinski ao seu lado.
– Era aí que seu pai se sentava e planejava os ataques – disse. – Você se sentava ao pé dele quando criança. Depois, você e seu irmão passaram a acompanhar a Corte e a trazer ouro para aumentar o tesouro do rei.
  O rei se levantou e tonteou. Colocou a mão na cabeça, sentindo uma pontada.
– Está bem, majestade?
– Nunca mais contradiga uma ordem minha! – vociferou o rei, voltando a ficar de pé. – Não me interessa se você acha que é o melhor, da próxima vez que você fizer algo assim, eu mesmo arranco sua cabeça!
  E então ele saiu, deixando Kajinski sozinho.
 
****

Bianca já tinha estudado todo o aposento. Ali tinha achado uma espada que seu pai usou muito bem na fuga, da primeira vez que ali estiveram. Remexeu no mesmo baú e achou algumas coisas, como taças de ouro e prata, um caldeirão de cobre, tecidos e joias. Achou um vestido seco. Era bonito, vermelho e marfim, e também achou um manto negro de veludo. Tirou seu vestido molhado e trocou de roupa, antes que pegasse uma pneumonia. O vestido era um pouco mais comprido que ela, mas caiu bem. Voltou ao baú e encontrou um pequeno cordão de criança com um pingente em forma de fada. O primeiro pensamento que veio à sua mente foi pegá-lo para dar à Eileen e, um segundo depois, a tristeza caiu sobre ela como um balde de neve. Ficou pensativa, sentindo uma enorme vontade de chorar, quando a porta se abriu.
  O rei entrou e foi até ela.
– Vamos fazer o que você disse! – falou ele, com certo ânimo. – Vamos mandar buscar sua amiga e usar o pó mágico que você falou.
  Bianca concordou com a cabeça e voltou a olhar para a pequena joia nas mãos.
– Você não está feliz? – perguntou ele.  – Não era isso que queria?
– Era! – respondeu ela. – É que lembrei de algo que me entristeceu.
– Pois diga! Mandarei açoitar quem a deixou triste!
  Bianca deu um sorriso triste.
– Temo que isso não seja possível... Ninguém açoita a morte.
  Ele se sentou de frente para ela.
– Nós conhecemos uma fadinha. Você salvou a vida dela. A Corte Unseelil tinha arrancado as asas dela, mas, contra tudo o que todos acreditavam, as asas voltaram a nascer, mas ela nunca mais voou. Ela era linda, sabe? Uma princesinha, de cabelos encaracolados, rostinho de anjo e fazia pequenas magias. Foi a magia dela que me salvou quando você... Bem, eu a amava. Nós a amávamos...
– O que houve com ela? – perguntou ele, temendo que seus trolls tivessem algo a ver com o desfecho daquela história.
– Ela morreu – disse Bianca, com um nó na garganta. – Ela estava escondida numa casa em que homens maus tacaram fogo. Por isso estou triste...
  Uma lágrima desceu pelo rosto dela. E depois outra. O rei parecia não saber o que fazer, ficando ali na sua frente sem reação nenhuma. Até que ele estendeu a mão e suavemente limpou a lágrima de seu rosto.
– Fadas não morrem. Só adormecem para acordar em uma flor que desabrocha numa futura manhã.
  Ela olhou para ele, surpresa pelas palavras bonitas e principalmente pelo seu tom de voz. Então ela percebeu que ele estava olhando atônito para sua própria mão. Ela pegou sua mão e observou enquanto as garras negras viravam unhas humanas perfeitamente normais.

****
  Urbain ficou feliz em ver a fada devolver o prato vazio e depois beber toda a água do copo.
– Há quanto tempo está aqui? – perguntou ele.
– Semanas, acho...
– O que é esse lugar? Uma prisão?
– Um tipo de prisão. É onde eles mantêm seus escravos. Você deve ter dado trabalho. Aqui é onde colocam os que consideram perigosos...
  Urbain sorriu orgulhoso. Era bom ser considerado perigoso.
– Por que não vem para a luz? – chamou ele.
  A fada se aproximou e dessa vez ele ficou de queixo caído. Os cabelos ondulavam sobre os ombros, o rosto tinha uma perfeição de boneca e os lábios rubros eram cheios. Os olhos eram azuis e brilhavam como a Lua no mar.
– Nossa! O que aconteceu? Você está linda!
  Ela sorriu daquele jeito que só as mulheres bonitas sabem sorrir.
– Eu sou uma musa – explicou ela. – Eu dou inspiração aos artistas. Porém, enquanto estiver com essas algemas, não tenho meus poderes e fico vulnerável às palavras que me atiram. Se me dizem coisas cruéis e horríveis, elas se refletem na minha aparência. No entanto, se me dizem palavras de amor e beleza, elas se refletem em mim também.
  Urbain estava pasmado, admirado com aquela que ele considerou a mulher mais bonita que já vira. Precisou se forçar a sair daquele encanto e voltar a se concentrar no problema que tinham.
– Leanan, eu quero sair daqui. Tenho esposa e filha e a última coisa que quero é ficar na mão de alguém que tem a clara intenção de me machucar.
– Como já aconteceu antes, não é?
  Ele se surpreendeu.
– Como sabe?
– Meus poderes de visão mística estão embaçados. Mas consigo ver alguns vislumbres e vi um pedacinho do seu passado enquanto você pensava nele, assim que acordou. Eu sinto muito o que lhe fizeram...
  Urbain agradeceu com um leve aceno de cabeça, um tanto constrangido de ter revelado o que teve tanto trabalho para esconder nas profundezas de sua alma.
– Mas você dizia que tem um plano... – voltou ela, encostando o rosto perfeito na grade fria.
– Bom, estou trabalhando nisso... Por enquanto, preciso de informação. O que você pode me dizer sobre esse lugar?
  Durante as horas daquela noite, Urbain e Leanan conversaram. Sentados no chão, ele fazia perguntas e ela respondia o que sabia. Aquela era a prisão de uma grande arena onde escravos lutavam, como nas velhas arenas romanas. Não só humanos, mas também seres encantados eram jogados na arena para deleite e lucro de outros seres, humanos e encantados.  Poderia levar semanas até que o levassem, ou poderiam levá-lo no dia seguinte, não havia como saber. Tudo dependeria do oponente certo.
– Por que você está aqui? Não vão jogá-la na arena, vão?
  Leanan fez uma pausa, olhando o chão por um momento.
– Estou aqui há semanas... Não sei o que planejam para mim na arena, mas posso garantir que não é nada bom...
  Urbain só podia imaginar que era algum tipo de espetáculo mórbido, como quando jogavam criancinhas aos leões nos tempos antigos.
– Não se preocupe! Nós vamos sair daqui!
  Ela o olhou e sorriu. Então, continuou contanto o que sabia, até que, exaustos, dormiram um pouco, cheios de planos e esperanças.

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora