capítulo 26 Na cela em frente

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  Urbain não tinha ideia do quanto dormira, mas foi o bastante para chegar aonde tinha que chegar. Não teve oportunidade de tramar nenhum plano de fuga.  Sentia-se um tanto fraco e foi difícil abrir os olhos. O que o forçou foi a lembrança de Bianca na janela. Ela estava histérica e sabia que ela ia sair correndo dali e enfrentar aqueles homens por ele. Que chance teria uma menina de 17 anos contra aqueles brutos? Ele poderia ter resistido, mas isso só aumentaria o perigo. Preferiu se render para que saíssem logo dali, deixando as meninas e o elfo em segurança.
  Abriu os olhos de vez e viu um teto de pedras. Tentou se levantar e sentiu as costas doerem. Havia marcas de grilhões em seus pulsos, mas estava livre deles. Olhou em volta e viu paredes e grades. Estava sentado numa cama de madeira dura presa às paredes por correntes grossas.
– Acordou, bonitão?
  Ele ouviu a voz feminina, mas não discerniu de onde ela vinha. Levantou-se e deu dois passos até a grade, onde viu apenas um corredor mal iluminado.
– Como se sente?
  Dessa vez ele percebeu que voz vinha da cela na frente da dele, o que devia ser um engano. O que estaria fazendo uma mulher ali naquele covil?
– Me sinto horrível... – respondeu ele. – Quem está aí?
  Uma forma feminina se desenhou na escuridão da cela em frente, ficando na meia luz. Urbain piscou várias vezes. Ela tinha longos e cheios cabelos negros que cobriam os ombros desenhados e um corpo escultural.
– Eu sou Urbain Grandier – apresentou-se ele, intrigado em encontrar aquela mulher ali. – Quem é você?
  Ela caminhou até a grade, entrando na luz. Ela tinha grandes olhos azuis delineados de preto e lábios carnudos e rubros. No entanto, estava descabelada, o vestido estava puído e rasgado e as unhas estavam maltratadas.
– Meu nome é Leanan Sidhe – apresentou-se ela. – Sou uma fada.
– É? – estranhou Grandier. – E o que faz aqui?
  Ela se apoiou na grade com cara de deboche.
– Passeando! O que você acha que eu faço aqui? Fui capturada, como você!
– Achei que só pegassem humanos!
– Não, a crueldade é bem democrática. Eles escravizam qualquer um.
– Onde estão suas asas? – perguntou Urbain.
  Leanan olhou para ele e seus olhos eram tristes. Então ela mostrou os pulsos, onde haviam uns braceletes escuros.
– O que é isso? – perguntou Urbain.
– Os grilhões que me aprisionam – respondeu ela. – Eles tiram minha magia. E, junto com ela, minhas asas...
– Eu sinto muito – disse ele, suavemente. – Esse não é lugar para uma dama como você.
  Ela sorriu, genuinamente feliz.
– Obrigada! Há tempos não escuto algo gentil.
  Passos e vozes interromperam a conversa. A fada imediatamente se refugiou no fundo da cela. Dois guardas surgiram no corredor. Colocaram uma cuia de mingau, ou algo parecido, e um copo com água, numa portinha na cela de cada um.
  Eles pararam na frente da cela da fada e começaram a rir e a gritar ofensas.
– Onde está sua beleza agora, docinho?
– Você não é mais tão bonita, afinal!
– Na verdade, você é bem patética! Uma pobre coitada sem beleza alguma!
  E então gargalhavam. Urbain se enfureceu.
– Parem com isso, seus imbecis! – vociferou, e sua voz imponente ecoou por todo o corredor.
  Os guardas o olharam com certa surpresa. E então se retiraram, deixando antes uma ameaça:
  – Sua hora vai chegar...
  Quando teve certeza de que tinham ido embora, Urbain tentou contato com a fada de novo.
  – Pode vir, eles já foram.
  Ela hesitou, e então veio até a grade. E Urbain tomou um susto. Ela estava mais baixa, mais estranha, o rosto parecia meio torto e os cabelos pareciam bem mais ralos e sem vida. A reação dele quando a viu a fez encher os olhos d’água. E então ela se jogou para a escuridão da cela e, por mais que ele a chamasse, ela não retornou naquela noite.

  *****

  Depois que Bianca fora brutalmente tirada deles, Bran e Analice ficaram momentaneamente perdidos. Viram o troll voar para longe com sua amiga, quebrando e derrubando galhos e folhas.
  Eles correram o quanto puderam atrás deles, até que não havia mais nada para perseguir.
– E agora? – perguntou Analice, com pouco fôlego.
  Bran se apoiou nos joelhos e então se ergueu, respirando. Ele não respondeu porque não fazia a menor ideia.
– De onde veio esse troll? – perguntou ele.
– Lá de trás! – respondeu Analice.
  E então Bran lembrou de algo.
– Espere! Ele disse que o rei deles queriam a Bianca! Não foi isso?
  Analice tentou se lembrar. Eram muitas emoções no mesmo dia, era difícil lembrar de tudo.
– É, ele disse isso.
– O rei deles é o Zac!!!
– Então... Ele a levou direto para ele!!!
– É só ela jogar o pó do espelho das almas e tudo estará resolvido! – comemorou Bran, com alegria.
  E então Analice, que também sorria, franziu o cenho, como se lembrasse de que alguma coisa não estiva se encaixando. Ela pegou a pequena mochila que estava nas suas costas e seu sorriso se desfez.
– Ela não pode fazer isso, Bran... – disse ela.
  Bran não entendeu. Então ela abriu a bolsa e retirou o saquinho vermelho.
– Na correria atrás das fadas, nós sem querer pegamos a bolsa uma da outra.
  O elfo colocou as mãos na cabeça.
– Por Paralda, por que nada dá certo?! – exclamou, gritando de frustração.
– Temos que levar isso para ela! – falou Analice, em tom de urgência.
– Ela está sozinha no meio da Corte Unseelil e se não conseguir convencer Zac de que ele não é um troll, vai acabar pendurada de cabeça para baixo em cima de alguma panela de sopa!
  Então voltaram correndo para o local do círculo das fadas. Nessa corrida, esbarraram em duas pessoas. Caíram todos sentados no chão.
– Ah, não! Vocês de novo! – reclamou Bran.
  Diante deles, Maeve e Fergus estavam caídos. No entanto, eles pareciam bem assustados e se levantaram o mais rápido que puderam e continuaram a correr mata adentro.
– O que deu neles? – perguntou Analice, sendo ajudada a se levantar por Bran.
  Antes que ele pudesse responder, uma voz firme foi ouvida.
– Auto lá! Vocês dois! Parados!
  Em um segundo, Bran e Analice se viram cercados por meia dúzia de guardas armados com um uniforme parecido com o de Fergus. O casal imediatamente se rendeu, mas tentou explicar que era um engano. Não funcionou. Foram levados sob custódia, deixando para trás o círculo das fadas que os levaria para mais perto de Bianca.

  *****

  O rei dos trolls ouviu com atenção a história de Bianca. Apenas contando a história ela via o quanto era surreal. Rezava para que ele acreditasse nela e colocava em cada palavra toda sinceridade que podia. Quando terminou, ele ficou um tempo olhando para o nada. Bianca esperou alguns momentos, mas ele não dizia nada.
– Você acredita em mim? – perguntou ela.
  Ele pareceu pensar longamente. E então voltou a olhar para ela.
– Não...
  Os ombros de Bianca caíram e ela sentiu vontade de chorar. O que mais tinha, o que mais poderia fazer para provar a ele a verdade?
– É uma história muito bonita, mas coisas assim não acontecem... – disse ele, se levantando. – Trolls são trolls. Não podem ambicionar ser nada além disso.
– E se eu pudesse lhe provar? – perguntou ela, numa última cartada.
  Ele se virou para ela, levemente interessado. Ela se levantou.
– Eu tenho um pó preparado por um grande mago. Ele lhe mostrará suas vidas passadas. E, ao vê-las, você recuperará a memória delas e poderá escolher qual delas quer viver nesta vida.
  Os olhos dele brilharam.
– Eu posso escolher?
– Pode – respondeu ela, mesmo sabendo que ele poderia escolher voltar a ser um anjo, ao invés de ser o seu Zac que trabalha nos Correios. – Você pode escolher.
– Muito bem! – decidiu ele. – Onde está esse pó?
– Com meus amigos Bran e Analice!
– E onde eles estão?
– Onde eu estava! – explicou Bianca. – É só mandar um desses trolls os buscarem, como fez comigo!
  Zac pensou por um momento e concordou. Virou-se para ir dar a ordem.
– Mas não mande nenhum que tente matá-los, como aquele tentou fazer comigo! – alertou Bianca.
  O rei parou e se virou.
– Quem tentou matar você?
– O grandão de chifre quebrado! Tentou me estrangular – disse ela, mostrando o pescoço arroxeado, – e teria conseguido se não fosse o meu pai.
  Zac tocou o pescoço machucado da moça. Então a pegou pelo braço.
– Ouça, você vai ficar aqui. Vou trancar a porta e deixar guardas.
– Não vou fugir! – reclamou Bianca.
– Não é por isso – respondeu Zac. – Mas é porque acho que você corre perigo. Eu dei uma ordem direta para que não machucassem. Vou deixar você aqui em segurança enquanto investigo isso. Também mandarei alguém atrás dos seus amigos.
  Ele saiu e Bianca ficou ali dentro daquele aposento enorme e cheio de tralhas. Assim que saiu, Zac deu ordens para os guardas.
– Ninguém entra aqui além de mim, entenderam? NINGUÉM!
  Passou a chave e a levou consigo. Precisava ter uma conversa com Jurubin.

a canção dos quatro ventosOnde histórias criam vida. Descubra agora