CAPÍTULO 26

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Para Kyle, salvar An Lepard era uma das piores coisas que já fizera na vida. Para sorte do corsário, Kiorina vivia. Mas ainda assim, essa condição poderia mudar a qualquer momento. Na realidade, a vida de todos corria grande risco. Após o desastroso ataque à mansão do Shark, poucos dos treze atacantes podiam sequer andar.

Gorum e Melgosh, assim como Kleon, sentiam fortes dores musculares, mas fora isso, podiam agir normalmente, e se necessário fosse, poderiam até lutar. Kyle com a perna quebrada caminhava com apoio de Zoros, que apesar do confronto com o terrível demônio, sentia apenas cansaço e dores. Kiorna, já desperta chorava muito com An Lepard em seus braços, leve sob a influência de sua magia de levitação.

Reunidos no jardim, sentiam grande pesar pela morte de Noran. Seu corpo já esfriava, e seu coração não batia. Archibald fizera tudo o que estava em seu alcance, mas não pode salvá-lo.

No momento, todos temiam principalmente por por Mishtra, gravemente ferida, carregada nos braços, por seu amado Archibald. Suas orações curativas foram fortes o suficiente para conter os sangramentos da Silfa, mas ainda assim sua situação era delicada.

Reunidos e conscientes de que deviam escapar a todo custo, seguiram em direção ao portão da mansão. Um dos arqueiros de Melgosh escapara das setas inimigas intacto. Seguiu à frente com grande habilidade para detectar a presença de inimigos. Muito barulho havia sido feito, e ao alcançarem as ruas, perceberam-nas movimentadas. Ao longe, soldados e guardas de Aurin surgiam a cada esquina, alguns já se agrupavam e fugir, cada vez mais, parecia uma impossibilidade.

O grupo deslocava-se lentamente e em poucos momentos seriam alcançados por um primeiro grupo de guardas. Na direção que caminhavam, escutaram o raro ruído de cascos de cavalo contra o pavimento Auríneo. Uma grande carruagem que vinha na rua perpendicular, aproximou-se do grupo desacelerando. Não pareciam ser guardas, mas ainda assim poderiam oferecer-lhe ameaça.

– Melgosh, aqui! – uma voz chamou em sílfico.

Melgosh surpreso exclamou, – Lorde Guiss!

O nobre silfo vestindo roupas escuras disse sem fôlego, – Vim para ajudá-los! O que vocês fizeram foi loucura!

O assistente de Guiss, Gshandei, pediu, – Vamos, por favor, subam enquanto há tempo.

Obviamente não havia espaço suficiente para todos. Melgosh ordenou ao arqueiro, – Allet, encontre um esconderijo juntamente com Kleon e Zoros. Depois, encontre-nos fora da cidade antes do alvorecer.

Escutando as ordens, o experiente arqueiro e profundo conhecedor da cidade de Aurin puxou Kleon pelo braço conduzindo-o a um beco próximo. Zoros seguiu-os. Apesar de mais velho, tinha o grande vigor dos silfos em suas veias. Para um humano de idade equivalente, certamente não restariam forças.

Subiram todos na carroça, mas ao fazê-lo, não puderam evitar a perseguição dos guardas.

Kiorina, em um primeiro momento de reflexão, observava o corpo de An Lepard. Estava escuro e poucos detalhes apareciam. Sentia em seu corpo, chagas e vergões. A cada toque, mais lágrimas e uma profunda dor no peito. Dentro de sua cabeça, tentava encontrar um sentido para tanta miséria e violência. Seus dias tranqüilos e despreocupados da Alta Escola pareciam um sonho distante. Uma ilusão. Seu coração endurecia, e em seu rosto e em seu olhar, fixavam-se as marcas de um amadurecimento precoce. Sentia sobre seus ombros algo como uma velhice triste e sofrida. Queimava dentro de si, a chama da vingança. Mas de novo, surgiam bons pensamentos, como um mecanismo que procurava balancear tudo e que a ajudava a manter-se com a mente sã. Lembrou-se dos dias ensolarados, nos quais teve a companhia e consolo do gentil e sorridente An Lepard. Seu Lepard, que adorava falar sobre o mar, seus peixes. Sobre as luas e as complexas marés geradas. Falava sobre sua terra, e outros lindos lugares que havia visitado. Lembrou-se das promessas de levá-la nos nove cantos do mundo, para mostrar-lhe as maravilhas que já tinha visto. E esse tipo de pensamentos fazia-na chorar, mais e mais. Lembrou-se de pobre Noran, e do choque que foi ver seu corpo e todo aquele sangue. Pensou em seus queridos amigos, Kyle e Archibald e ficou feliz por terem sobrevivido, feliz por lhe serem tão fiéis e arriscarem sua vida em nome do amor que sentia por An Lepard. E isso também aumentava suas emoções, e intensificava seu choro. Parecia que aquele era o momento mais triste de sua vida e em tudo que pensava, enxergava tristezas. Lembrou-se de seus pais, lembrou-se de Dora. Teria a criada de quem gostava tanto morrido assim como seus pais? Chorou por nunca ter feito as pazes com seu pai. E chorou de ódio ao lembrar-se de Chris Yourdon, um rival dos tempos de escola que tornara-se cruel e terrível vilão aliados dos malditos necromantes. E sua memória voava longe, e sentiu muita tristeza e saudades dos anões que a acolheram enquanto esteve sob o cativeiro dos necromantes, enquanto sofreu presa pelo sádico Fernon. Enquanto assistia a miséria e humlhação daquele povo tão unido e companheiro. O quanto aprendera justamente com os anões, e o querido Thodur Balink, e suas longas barbas cinzentas. Seu jeito rígido e severo, que convivia com serenidade e doçura. Foi com os anões que a frágil menina, criada numa cúpula de cristal, aprendeu a resistir às durezas da vida. E um ciclo se fechava. Pelo sacrifício de Noran, ela e Mishtra escaparam de piores tratos por parte dos Necromantes. Seu cativeiro fora suportável, justamente porque Noran se sacrificara, agindo em conjunto com o mal, fazendo o mal a outros e por conseqüência a si mesmo. E depois de tudo isso, num novo sacrifício, ele morrera. Sacrifício que em última análise, ocorreu por causa dela e de seu forte impulso por resgatar An Lepard. E lá estava ele, semimorto em seus braços, sendo banhado por um rio de lágrimas. E tantos pensamentos, tantas reflexões que mal pode ouvir o que ocorria à sua volta. As palavras ditas em sílfico se embrarlhavam e não passavam de um pano de fundo para seu intenso sofrimento.

Melgosh surpreso ainda surpreso com a ajuda de Lorde Guiss indagou, - Mas Lorde Guiss, por que arriscar-se para nos ajudar?

– Tinha espiões observando a casa de Shark dia e noite, logo que o ataque iniciou-se, recebi notícias. Soube também de um estranho carregamento trazido do navio dos humanos, caixões. Algo que me intrigou mais ainda.

– Mas não faz sentido, podemos ser pegos, o Sr. pode ser implicado, ligado a assassinatos.

Lorde Guiss observou An Lepard com pesar e escutava o constante choro de Kiorina. – Que seja! Cansei-me de colaborar com aquela criatura suja. O simples fato de fazer negócios com um vilão cruel como Shark, foi o suficiente para tirar meu sono. A degeneração de nosso povo está passando dos limites! Percebi isso antes de ontem, durante um almoço de negócios com Shark. Ele é doente o que fez a este pobre rapaz é impensável. E é assim que trata outros tantos, inclusive nossos irmãos de raça.

– Entendo.

– Resolvi ajudá-los para que pudéssemos nos ajudar. Penso que é hora de quebrarmos esse sistema, mudar o que ocorre com nosso povo, e você Melgosh, tem meu respeito. Respeito sua coragem e acredito que poderemos organizar um movimento para ir de encontro a essa insanidade em que vivemos.

Melgosh parecia um pouco emocionado. – Agradeço sua estima por mim. Meu pai ficaria feliz se pudéssemos lutar juntos contra a degeneração de nosso povo.

Lorde Guiss estava entusiasmado e prosseguiu, – Eu sei, ele era muito honrado, um silfo digno de juntar-se aos bravos heróis do passado. Percebi que é hora de agirmos, existem muitos simpatizantes das ideias abolicionistas. Pois sim, o primeiro passo para dignificar nosso povo é com o fim desse covarde regime escravagista.

– Entendo caro Lorde Guiss, mas estes são uma pequena minoria entre os Farmin. O grande clã depende basicamente de escravos para viver, como convencê-los a abdicar de coisa tal? Essas ideias, partindo daqui, fatalmente levariam a uma guerra civil entre os grandes clãs. Os Orb e os Maki, provavelmente ficariam do nosso lado, contra os Hiokar e os Farmin.

– E quanto aos Mikril?

– Essa é a chave da questão, para termos alguma chance de sucesso, precisamos fazer com que mudanças partam diretamente do nobre Clã Mikril.

– Mas como, caro Melgosh?

– Tempo. Sempre há tempo o suficiente se formos pacientes. Por hora, uma grande tentativa, acabaria em violência, guerra e fracasso.

O cocheiro era muito habilidoso e conhecia as ruas de Aurin muito bem, pode sem muitas dificuldades despistar dois grupos que os perseguiam e rumar para fora dos limites da cidade.

Enquanto isso, Allet, Zoros e Kleon chegaram até o canal onde um dos botes de Melgosh os aguardava para a fuga. Zoros usou suas últimas reservas de energias para convocar seus amigos, espíritos elementais da água. Sua atuação pode apenas garantir-lhes a saída segura da região portuária de Aurin. Após isso, todo o trabalho de remar ficou para Kleon e Allet.

Maré VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora