3. A Fada e o Dragão

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Coberta pela névoa do choref, a estação mais fria do ano, Desdalain era o esboço de um sonho.

Iluminada aqui e ali por postes metálicos, ela se estendia no promontório com casas de tijolos cinzentos e telhados vermelhos. Suas moradas peculiares possuíam chaminés e luminárias acendidas pela Nepl, combustível mágico retirado das montanhas e processado nas Fábricas da Névoa. Localizadas ao redor da cidade como uma espécie de contraforte empresarial. As fábricas se estendiam por debaixo da terra em galerias imensas para que processassem a Névoa sem contato com o sol, que acelerava sua evaporação.

Desdalain era um lugar que dividia a arquitetura antiga com engenharia moderna. Um dos pontos sobreviventes era a floresta, que a margeava ao norte, usada pelos jovens enamorados para encontros secretos. Suas árvores não eram muito altas e havia estátuas em sua orla – monumentos a heróis do passado, cujos pés jaziam cobertos de oferendas.

Um cão selvagem caçava um pequeno roedor quando notou várias sombras projetadas no solo. Assustado, abandonou sua presa e correu para o mato. As sombras arremeteram e pousaram. Eram grifos metálicos montados por homens e mulheres de roupas negras e chapéus tricornes, com exceção do último, um menino de roupas claras. Eles trotaram por um tempo e começaram a correr pelo campo para ganhar velocidade novamente.

– Svann, seu filho vai se atrasar! – gritou um deles, impulsionando seu animal para voar.

– Rápido, Kadriatus! – devolveu o primeiro. – Você não quer perder seu mitzvah, quer?

Ele decolou com muito esforço. Depois de duas tentativas o menino o acompanhou.

* * *

Perto dali, Sehn e Maya subiam a vertente em direção a uma árvore, cujos galhos destacavam-se sem folhas numa terrível imitação de braços retorcidos. Sob o raiar do sol, ela era não mais que um espectro.

Sehn era alto para a idade, um menino robusto e de pele escura, seus cabelos eram baixos e crespos, o nariz largo e olhos vermelhos como o crepúsculo. Ele usava um macacão preto e uma camiseta, além de uma jaqueta de couro marrom. Maya era seu contraste, de pele branca, os cabelos vermelhos e encaracolados, também não era muito magra, os olhos eram verdes e alegres e ela era mais baixa que o amigo. Ela usava um vestido verde e longo, calças por baixo e botas de cano alto.

Apesar do aspecto macabro da árvore, dois pássaros cantavam alegremente uma música estridente e ressoante.

– Pássaro idiota, não dá nem pra comer essas coisas – Sehn reclamou os reconhecendo de imediato, apenas os órix cantavam no inverno. Graças à suas penas metálicas e ao óleo que corria em suas veias, não sentiam frio.

– Belo dia pra fazer um piquenique – completou. Trazia nas mãos um cesto pesado, cheio de tranqueiras. Colocou-o no chão cuidadosamente e olhou para a menina de cabelos vermelhos e encaracolados que parou ao seu lado.

– Aqui está bom? Piquenique no inverno, só pode ser piada. – continuou reclamando.

– Tá sim – Maya ignorou as reclamações.

Ela não percebeu, mas dois galhos formavam uma cruz exatamente onde estava. A cruz era um instrumento de tortura usado em traidores e desertores. Sehn nada disse. Viu-a enfiar as mãos no cesto e começar a tirar as guloseimas que tinham trazido de casa para aquele dia especial.

– E larga a mão de ser chato, faz tanto tempo que a gente tá marcando isso.

Maya sabia que o amigo fingia não se importar, mas aquele era o último dia que os dois passariam juntos, e estava decidida a torná-lo especial.

O Baronato de Shoah - A Canção do Silêncio - Edição Wattys 2018Onde histórias criam vida. Descubra agora