15. Herdeiro

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Sehn voltou para o Cenóbio de Ahator quatro dias depois. Era lá que seus pais estavam, sob os cuidados dos mais poderosos kohanim e mashiyrra do exército.

Faria um sacrifício em nome da honra de sua família e da vontade de seus pais. Dante vinha atrás acompanhado de Diren. Os membros restantes da Canção do Silêncio, Nadja e Kadriatus, não tinham forças para acompanhá-los. Sehn ainda não fora visitá-los, tinha medo do que ia encontrar. Pelo que sabia, os kohanim estavam perdendo as esperanças de salvá-los.

Na cintura, Sehn trazia a espada-arco que pertencera a Aleantrus. Embaixo do braço direito, o único com movimentos, o elmo de sua mãe. De suas costas pendia o manto roxo dos sepher. Fazia parte do ritual trazer aos mortos seus pertences mais valiosos. Ainda que Aleantrus e Thyzar não tivessem abandonado aquele mundo seu destino estava selado.

Ele parou em frente a uma porta dupla.

– A partir daqui eu vou sozinho.

– Você não precisa passar por isso sozinho, eles podem chamar os Executores. – Diren tentava impor ao amigo sua vontade. – Talvez seja melhor.

– Não. É hora de cumprimos nossas obrigações. São meus pais e vou dar a eles um enterro decente – virou as costas e entrou sem esperar uma resposta. A luz exterior foi substituída pelas lâmpadas amareladas. Dois kohanim aguardavam no salão principal. Não usavam a armadura de batalha da Sephiroth, mas túnicas negras e longas sem adorno algum.

– Nós o levaremos, senhor – disse o primeiro, o mais alto. Devido à fina camada de névoa a seus pés, dava a impressão que flutuava.

O trio parou em frente a uma cela cuja porta de bronze trazia um "H" estilizado. Aquela era a Netzach, a casa funerária: o templo sagrado dos Escolhidos, onde repousavam os mortos. Um lugar cheio de mitos, histórias, honras e destinos. Ali estavam os corpos dos Hadjakkis e todo o seu legado. Suas armas, armaduras, livros, diários e outros objetos. Ali estavam os pais de Sehn.

– Eles pediram por você – disse o kohanim mais alto. Abriu a porta com um leve toque, Sehn entrou e os dois aguardaram do lado de fora. – Você pode nos chamar se não conseguir, senhor.

Sem nenhuma presença de espírito e passos trôpegos, Sehn mergulhou nas trevas da Netzach. Só um archote ardia, sem conseguir iluminar a sala inteira. A sombra do Escolhido dançava nas paredes.

Do fundo da cela veio uma mulher pálida, loira, olhos verdes e baços. Balbuciava palavras sonsas. Seu rosto estava protegido por um véu cinza. Uma mashiyrra que havia perdido a razão.

– Mãe – a voz embargada de Sehn ecoou pelo calabouço e se perdeu. Abraçou a mulher pela primeira e última vez. O corpo frágil aceitou o carinho que o rapaz fez com a mão direita, mas não retribuiu. A raiva que sentia dela passou na mesma hora. Começou a entender os sacrifícios que ela fizera para lhe dar uma vida digna.

– Thyzar. Escolhida de Shoah, por favor. Por favor, mãe – Ia ficar pior, ele sabia. Estava aguardando o desfecho para lutar contra a loucura.

– Estou tentando desde que chegamos – disse a voz rouca no fundo da cela. Sehn virou-se abruptamente e viu o pai jogado na cama. Um boneco raquítico, depredado por uma maldição similar à que se abatera sobre a esposa. O coração de Sehn acelerou.

– Pai... – O mundo ruiu para Sehn. Nada mais restava naqueles dois, além de um pretérito pesaroso.

– Ele partiu meu espírito e a alma de sua mãe – sentenciou Aleantrus. – Edgar é a mais poderosa criatura viva neste mundo, filho. Unindo-se a Tesla, ele despertou o primeiro Titã, Tehom, e agora pretende derrubar o Império. Edgar nos traiu. Sabia que destruindo nosso espírito e alma nunca teríamos descanso na Eternidade. Nos foi negada a Paz de Shoah. Obrigado por poder nos ajudar a ter uma morte digna.

O frio perpassou o corpo de Sehn. Destruir um espírito ou uma alma era privar o ser da Eternidade. A mãe começou a entoar uma litania. "Na hora de nossa morte, amém". Ela nunca teria o encontro com Shoah, onde todos os Sacerdotes e Escolhidos eram recompensados por sua luta.

Sehn matutava um plano, talvez funcionasse.

Começou a pensar em Namid e no truque que usara para enganá-los. Queria tentar algo parecido. Ele queria morrer também, sacrificar a alma e salvar os pais. Passava por um desespero que muitos adultos nunca teriam de enfrentar. A ideia de salvar os pais começou a se formar em sua cabeça. Havia uma esperança ínfima.

– Se eu sacrificar a alma de Namid, posso enviá-los para a Eternidade – comentou.

– Perigoso demais. Você não recebeu todo o treinamento dos mashiyrra. Nem mesmo seu avô podia fazer isso. Podemos quebrar sua alma.

– Não. Eu sei como fazer – ele se aproximou do pai e o abraçou. – Eu posso dar a vocês uma vida na Eternidade ao lado de nossos antepassados.

Sehn guiou a mãe até a cama e levantou Aleantrus. Fez com que os dois se abraçassem e começou a rezar. A energia azulada cobriu seu corpo e lágrimas desceram por seu rosto. Ele sentiu a mão esquerda arder e os curativos rasgarem.

– Eu posso fazer isso, posso dar a felicidade a vocês – murmurou.

– Não haverá maior honra para ela, filho – Aleantrus confirmou o que devia ser feito e se concentrou. A luz ficou mais intensa, escapando pela fresta da porta.

– Eu não posso partir minha alma, mas posso usar Namid para isso – falou Sehn. Thyzar fechou os olhos vagarosamente. Foi colocada ao lado do marido e pareceu dormir tranquilamente. Aleantrus beijou sua testa e abraçou seu corpo. Depois ordenou:

– Me dê sua mão.

Sehn deixou a espada cair. No princípio, recusou. O olhar paternal obrigou-o a ceder. Ajoelhou-se e esticou a mão esquerda. Despedaçada, jamais levantaria uma arma. Exatamente como Edgar queria.

– Eu prometo que vou me vingar, pai – a voz rouca de Sehn quase não pôde ser ouvida.

– Saiba que seu pai te ama. Tenho muito orgulho do homem que você é... e do que vai se tornar.

A mão esquerda do pai apertou a mão esquerda do filho, ligando os corações por um instante. O sangue ferveu. Chamas das velas vacilaram e se apagaram. A névoa e a luz projetaram-se sobre os dois, tampando as mãos com uma parede branca e gélida.

Longe dali, Tehom rugiu.

O Baronato de Shoah - A Canção do Silêncio - Edição Wattys 2018Onde histórias criam vida. Descubra agora