18. Perdidas

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Quando Sehn desceu do trem, não esperava encontrar a estação vazia e silenciosa. Era meio-dia, as pessoas deviam estar correndo apressadas rumo a seus destinos, olhando para baixo ou lendo jornais.

As guaritas de vigilância estavam abandonadas, os bondes tremiam levemente enquanto esperavam seus passageiros e as barraquinhas de comida estavam quietas. Os postes de luz, acesos. Tudo indicava espera e atraso, exceto o trem que vinha de fora. Ninguém mais desceu, os passageiros deram uma olhada rápida para a cidadezinha e fecharam suas janelas. Alguns se recostaram nos bancos e dormiram.

Tosten era uma cidade pequena, com casas feitas de tijolos, chaminés, telhas vermelhas e um comércio fraco. Sua única vantagem era a estação de trem que pouparia três dias de viagem a Sehn. Parecia pouca coisa, mas três dias era tempo demais depois de tudo pelo que passara.

Ele estava na praça em frente à estação. Um frio sobrenatural pairava, fazendo-o bafejar. Havia estalactites de gelo nos telhados das casas e uma fina camada escorregadia sobre a rua.

Aos poucos, um burburinho tomou a cidade e uma multidão surgiu perante seus olhos. Antes que ele pudesse se assustar, desapareceu.

Com o susto, piscou para saber se era verdade. A cidade estava vazia. Fechou os olhos, barulho. Vozes, passos, discussões. Respirou fundo, abriu-os novamente. A cidade estava cheia de fantasmas. Vultos translúcidos continuavam a viver normalmente, apesar de ceifados pela Dama Inexorável. Almas cujo descanso fora abalado por uma morte violenta. O pior era tentar imaginar os corpos, já que não havia nenhum.

Engoliu em seco ao ver um bonde cheio de crianças fantasmas esperando o motorista. Uma lágrima caiu de seu rosto ao passar os olhos por um casal translúcido sentado num banco. Lembrou-se de Maya e torceu para ser rápido o suficiente e chegar a Desdalain antes de Edgar dar seu próximo passo. Precisava encontrá-la e alertar a sua família sobre o despertar de Namid. Tinha esperanças de que eles já soubessem, afinal, Edgar era o assunto mais comentado nos últimos meses.

Os fantasmas não notavam as próprias mortes. Continuavam suas vidas como se nada tivesse acontecido. Sehn sabia quem tinha feito aquilo. Quem era o responsável por tais atrocidades, o homem que destruíra sua vida e seu futuro. Nascido numa cidadezinha como aquela, treinado e amado como um irmão. Tão igual e tão diferente de Sehn quanto duas pessoas podem ser.

A Fênix Morta. Edgar Crow.

Diferente de Edgar, o povo de Tosten não mais vivia. Eram ressonâncias de seus corpos, lembranças, desarmonias na ordem da vida e da morte. Na Kabalah, recebiam o nome de Ruach – almas.

Sehn caminhava no alto de uma perigosa plataforma que ficava entre a luz e a escuridão, pois espíritos almejavam sensações, grudavam-se nelas inconscientemente e obrigavam seus donos a conviverem com eles. Se a qualquer momento se deixasse levar pelo coração, podia servir de âncora para um daqueles mortos que o cercavam e se ver acorrentado a eles por fios de prata e lágrimas.

Uma das funções dos mashiyrra era trazer o equilíbrio àquelas almas e impedir que se corrompessem. Fazê-los se conscientizarem do que se tornaram e da senda a trilhar. Alguns eram rápidos, uns demoravam horas, dias, até anos para abandonarem o local de seu falecimento.

A maioria das almas começava a se desfazer como fachos de luz ou poeira brilhante. Só a presença de Sehn já era o suficiente para apaziguá-los. Isso o deixou feliz, não queria mortes dentro das mortes. Algumas almas olhavam afoitas ou traziam lágrimas aos olhos. Poucas o ignoravam. Aceitar era a maneira mais fácil de retornar. Uma moça loira fitou-o, desapareceu. Um menino gordinho sorriu em sua direção, desfez-se. As gêmeas ruivas na rua acenaram-lhe e, quando olhou novamente, elas não estavam mais lá.

Seu olhar passou pelas casas e pessoas abandonadas, vistoriando cada uma e tendo certeza de que estavam fazendo a Travessia tranquilamente. Viu uma menininha agarrada à mãe desaparecer, um velho de cabelos cinzentos se romper no ar e um homenzarrão se curvar sobre uma garrafa de bebida, tentando agarrá-la. Quando achou que estava abrindo o recipiente, sumiu e o vidro se quebrou na terra.

Em breve estariam todos descansando, esquecidos de seus crimes e pecados, prontos a se tornarem novas almas. A cidade ficou silenciosa. Coberta pela neve e pelos corpos. Sehn podia ir embora, continuou na avenida principal até que um ruído lhe chamou a atenção. Faltava alguém.

– Bom dia, mashiyrra. Que Shoah te abençoe – cumprimentou o fantasma de um cocheiro. Atrás dele, a escadaria da estação estava coberta de entulho. O relógio que marcava o horário dos trens continuava a andar, alheio à ausência de passageiros.

Sehn estranhou, geralmente as almas não vinham ter com ele. Bastava a presença de um mashiyrra para apaziguar-lhes a morte. Mas era fortuito, ele precisava das informações que aquele ser guardava. Uma dica sobre Edgar faria toda a diferença agora. Concentrou-se, impedindo que sua alma apaziguasse aquela.

– Bom dia, cocheiro – cumprimentou de volta.

Viu através dele dois cavalos metálicos. O da esquerda estava desligado, o da direita ainda revolvia a terra. Não esboçou reação alguma, erguia para si uma redoma ausente de sentimentos. Qualquer emoção podia criar um vínculo entre os dois, obrigando o vivo a aceitar a presença do morto.

O cocheiro lhe lançou um olhar sombrio.

– O que nossa cidade pode oferecer ao senhor? A gente tem menos que nada.

– Procuro um homem.

– Geralmente procuram mulher – brincou o cocheiro. A sisudez do rapaz o fez desistir, olhou para o céu constrangido com a própria idiotice. – Tem poucos homens por estas bandas, a maioria viaja pras cidades e volta uma vez por ano.

– Procuro um homem específico. Cujas mãos tocaram um Titã.

O senhor dos cavalos apertou o chapéu entre os dedos, temeroso.

– O senhor não devia falar assim. Homens que tocam um Titã são fortes demais. –Pensando nos últimos dias, o cocheiro deu um suspiro alto. Por fim, disse o que era necessário:

– Um homem esteve aqui e subiu as montanhas.

Pela primeira vez o andarilho se deixou levar pelas emoções e avançou dois passos em direção ao condutor.

– Um homem de cabelos amarelos...

– E olhos de jade... Tesla – murmurou Sehn. Suspenso pela ira, não prestava mais atenção às palavras do fantasma, nem notara o fio de prata fechando-se sobre seu calcanhar.

– Foi ele quem matou Tosten – completou o fantasma do cocheiro, morto há um dia.

***

Era tarde, Sehn tomara a senda para as montanhas, deixando para trás a cidade dos mortos. Tosten era uma lembrança. Não havia estação, cocheiros ou cavalos. Só morte e flocos de neve.

– Oi – a vozinha arrebentou a solidão com um murro certeiro. Sehn deu um salto e se virou. À sua frente estava uma menina de cabelos pretos e curtos, olhos violeta e um vestidinho verde-esperança. – Não consigo ir embora.

Por um momento, ele procurou na memória um instante em que se emocionou durante a passagem por Tosten. Com muito custo lembrou-se do cocheiro e da informação sobre Crow. Arrependeu-se. Naquela hora a menina devia ter sentido a raiva invadir-lhe o coração e se agarrara aos seus sentimentos.

– Eu sei – disse, quase sem emoção. Ao olhar para o calcanhar viu o cordão de prata e lágrimas que o ligava ao espírito pueril. Tinha várias escolhas agora. Todas cruéis, frias. Só uma delas daria esperança à infante.

Podia se virar e esquecer-se dela, condenando-a. Podia destruí-la com a fé, separando espírito e alma. Podia, simplesmente, aceitar sua presença.

Optou pela terceira quando se apresentou:

– Meu nome é Sehn Hadjakkis. E o seu?

– Minerva Firth. – O rostinho dela se iluminou

Continuaram pela estrada, com aquele fio brilhante prendendo-os pelos calcanhares. Olhos humanos jamais poderiam vê-lo, mãos humanas jamais poderiam tocá-lo.

O Baronato de Shoah - A Canção do Silêncio - Edição Wattys 2018Onde histórias criam vida. Descubra agora