33. Casamento

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Em frente ao templo de Shoah estavam os restos de Tehom e Desdalain aguardando a remoção. A milícia patrulhava as ruas, na vã tentativa de encontrar Legisladores remanescentes. Mensagens de ajuda foram enviadas à capital, mas não houve resposta. O baronato perdera o contato com o restante do Império e tinha de se proteger sozinho.

Os sinos badalaram três horas da tarde. Um sol alaranjado, frio, caía sobre Desdalain. Os ggoyim deram o melhor de si para deixarem o templo de Shoah apresentável. Guirlandas foram colocadas nos bancos, estátuas foram limpas e os telhados sofreram alguns reparos, mas ainda tinham grandes buracos.

Em sua sala Phillip ajeitou o kitel, a peça branca, semelhante a uma mortalha, que deveria ficar por cima de seu terno. Ela servia para representar a pureza e lembrar ao noivo que mesmo no dia mais feliz de sua vida, ele era só um homem. Apesar disso, via-se como um perfeito cavalheiro, um ggoyim que em breve herdaria duas rentáveis empresas. Olhando-o calmamente, Jacques Fletcher, seu pai, e Karl Hawthorn, seu futuro sogro. Os dois conversavam em voz baixa, fazendo os últimos acertos da sociedade que em breve assinariam. O senhor Hawthorn passara os últimos dias em busca do filho, apesar de o governo ter colocado o nome de Lukas na lista de vítimas fatais não reconhecidas, e aparentava fadiga, com movimentos lerdos e cansados. Mary insistira para que o casamento acontecesse, uma vez que queria diminuir a dor pelo sumiço do filho. A desculpa não parecia muito boa, mas o noivo não se importava.

– O que acham? – indagou Phillip, mostrando uma gravata vermelha e uma preta.

– A preta – respondeu Jacques. Phillip notou o incômodo de Karl, visível em cada ruga de seu rosto. A porta da sala abriu, CEthwardla, mãe do noivo, entrou declarando:

– Você está adorável, querido. Vamos terminar logo com isso? – seguindo as tradições, após ler o contrato de noivado, CEthwardla quebrou um prato de porcelana. Isso simbolizava que, assim como o prato não podia ser consertado, um contrato de noivado quebrado jamais se reconstruiria. Karl sempre se perguntava sobre a simbologia de sua fé, tentando fazer um paralelo entre o prato e os verdadeiros sentimentos que deveriam existir em um casal. Tendo consciência dos sentimentos da filha, começou a se arrepender de ter dado prosseguimento àquilo. Pediu a Shoah para que outro Titã despertasse e destruísse tudo. Mas não foi atendido. Bastava agora só assinar o Ketubá, o contrato de casamento. E Maya Hawthorn seria efetivamente Maya Fletcher.

***

O Kidushin é a consagração entre duas pessoas, cujas almas foram preparadas uma para a outra na Eternidade. É a união máxima que dois seres vivos podem ter, a expressão máxima de seus sentimentos e a confirmação de que seus destinos deveriam se cruzar. É um dos rituais mais importantes para os ggoyim e os bnei shoah, superando até o mitzvah. Devia ser um momento de alegria para Maya, mas ela não conseguia sorrir enquanto, em seu quarto, sozinha, colocava o véu sobre o rosto. Desde que enfrentara os titãs caíra em uma terrível apatia, nada a incomodava ou irritava. A voz de Namid sumira, assim como Sehn e a Canção do Silêncio. Essa era a pior parte, ser esquecida depois de tanta luta e saber que boa parte disso fora por sua causa.

Perdera a fada, não se lembrava dos instantes próximos à sua morte e ressureição. Ainda ostentava, com orgulho, a cicatriz abaixo do olho esquerdo. As madrinhas quiseram disfarçar o ferimento com maquiagem, mas a moça não permitiu.

– Meu esposo tem que me aceitar como sou – retrucou aos protestos das tias. Depois trancara a porta do quarto. Não queria ser importunada até a hora da cerimônia. Precisava colocar as ideias no lugar e pensar nos rumos de sua vida daqui para frente. Mal acreditava na forma que a mãe tratava o sumiço do caçula. Sentiu falta de algo. Quis saber o quê. Mas a apatia deixava a mente lerda, preguiçosa. Precisava de um abraço do irmão, que ele lhe dissesse que tudo ficaria bem. Não sabia onde ele estava, provavelmente morto, jogado em uma vala comum. Ao mesmo tempo em que pensava isso, algo no fundo de sua mente alertava que não.

O Baronato de Shoah - A Canção do Silêncio - Edição Wattys 2018Onde histórias criam vida. Descubra agora