Uma fina garoa cobria a cidade. Era oito da noite de yom-shishi, o último dia da semana. Geralmente os bares estariam apinhados de jovens, e as caixas de som reverberariam música alta nas pistas de dança. Mas a baixa temperatura desencorajava qualquer boêmio a enfrentá-la e um clima lúgubre oprimia os cidadãos desde o ataque a Tosten. As notícias eram recentes e obscuras, mas a milícia fora colocada em alerta para eventuais ocorrências.
Fora declarado toque de recolher em todo o Quinto Império. As montanhas de Hellyah, onde se estimava que Edgar e Tesla se escondiam, estavam sitiadas. As cidades contratavam mercenários para ajudar na proteção. Em todas as ruas e esquinas a milícia montava postos de guarda. Uma aura de repressão pairava sobre o Império, misturada à paranoia e ao medo, tornava as pessoas violentas, aumentando ainda mais a onda de crimes. Então, o Império era obrigado a aumentar a vigilância, trazendo mais soldados e mais controle, abusando de seu poder, num ciclo interminável de manifestações e intervenções. Se a situação não fosse resolvida logo era perigoso principiar a primeira guerra civil de Nordara.
Um aeronavio pouco menor que o Beatrix passou pela garoa em baixa velocidade. Velas negras, só uma pá traseira, não produzia tanto barulho quanto o famoso barcalma de Dante. Porém, era mais lerdo e menos resistente, contava com menos canhões e saídas laterais. Em sua proa, quase acima da carranca, Bernard soltava a cabeleira branca e erguia o rosto, recebendo os delicados pingos da garoa.
– Finalmente eu voltei... – sussurrava. O falso comandante mexia a boca, dialogando com alguém que não estava ali. Os demais soldados o olhavam, espantados. Há tempos o comandante dava sinais de loucura. Tehom, no corpo do humano, não se importava nem um pouco com os comentários alheios.
– Em breve você estará livre. Então, levará a morte a estes seres de carne. Mostre a eles o poder de nosso sangue e faça-os se arrependerem de sua liberdade. – Ainda com a cabeça para cima, Bernard fechou uma das mãos sobre o relógio quebrado que sempre carregava no bolso do sobretudo.
Vendo a cidade se aproximando, afastou os pensamentos. Viu o porto de Latig, uma estrutura metálica e cilíndrica onde os aeronavios ficavam estacionados. Na parte de baixo, vários bondes e carros próximos à praça principal. O porto estava vazio quando o aeronavio de Bernard chegou.
O capitão militar se aproximou do comandante e bateu continência antes de falar:
– Senhor, os homens estão nervosos. Tem certeza que vamos prosseguir? – Sardeck permaneceu imóvel como uma estátua, apesar do tempo frio. O capitão usava o uniforme comum do Império, mas em seu peito estava uma corrente de prata com uma serpente enrolada em si mesma. Seus subordinados usavam o mesmo símbolo em partes diferentes da vestimenta, como dragonas, anéis ou cintos.
Bernard, ainda fitando o porto com seu olho humano, mas deixando o olho metálico rodando caoticamente, respondeu: – O Messias Sombrio assim decidiu, Legislador.
Há algum tempo Bernard vinha agindo diferente. Estava mais ereto, calmo. Sardeck achou melhor não falar nada sobre isso, continuou parado para responder:
– Como desejar. – Então girou nos calcanhares e passou as ordens para os demais.
O aeronavio ficou circundando o porto. Bernard sinalizou para a tripulação, Sardeck correu até o centro do convés, onde havia uma série de alavancas altas, e ficou a postos.
– Quando ordenar, milorde! – falou pegando nelas.
Bernard ergueu a mão esquerda com os dedos abertos. A cada volta que o aeronavio dava no porto, abaixava um dos dedos. Várias pessoas começaram a se aproximar para ver o que os militares estavam fazendo. Curiosas, apontavam para a semiabertura no casco. Na quinta volta Bernard abaixou o dedo mindinho e ordenou de uma vez:
– Liberem a carga.
Da semiabertura surgiu uma grande caixa metálica. Tinha quatro metros de altura e seis de comprimento. Presa por cabos reforçados, foi baixada até o chão. Assim que o objeto estabilizou, Sardeck puxou as alavancas em sequência da direita para esquerda, soltando os cabos um a um. Porém, o da tampa continuou.
O povo foi chegando perto, perguntando-se o que estava acontecendo. Uns tocaram no objeto, outros enfiaram o dedo nas pequenas frestas das paredes. Um homem afastou-se depressa, reclamando.
– Alguma coisa me mordeu! – Seus dedos sangravam.
– Acabem com isso, Legisladores – sentenciou Bernard. Virando as costas para a cena e andando pelo convés até o timão.
Sardeck abaixou a última alavanca, a corda restante deu um tranco e puxou a tampa da caixa, permitindo que as paredes caíssem. Enquanto isso os soldados no aeronavio colocavam seus capacetes e abaixavam as viseiras negras sob os rostos.
Um guincho estridente explodiu da cidade, acompanhado do berro de pavor dos cidadãos. Bernard não se dignou a olhar, mas seus sentidos captaram os passos acelerados e os tombos na lama daqueles que desejavam fugir da ameaça. Triunfante, apenas disse:
– Do pó viestes...
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O Baronato de Shoah - A Canção do Silêncio - Edição Wattys 2018
FantasíaO Baronato de Shoah - A Cançao do Silêncio, venceu o Wattys em 2018 na categoria "Construtores de mundo"; está de volta ao Wattpad após uma pesada crise de antisedade que eu tive em 2018/19. Peço desculpas aos leitores por ter retirado a obra do ar...