PRÓLOGO

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Um ano antes...

Helena

Faço um esforço enorme para abrir os olhos. O sono aliado aos medicamentos me domina totalmente. Sei que preciso me levantar. Meu plantão começa em uma hora.

Uma lambida no rosto, depois mais outra, e outra. É como se ele soubesse que estou atrasada. Sinto o costumeiro caroço bloquear minha garganta com o choro que não deixarei vir à tona.

— Eu sei, garoto. — Acaricio a cabeça pequena de Bob, meu pug. Meu fiel companheiro.

Forço meu corpo para sentar. Sonhei com ele mais uma vez e foi tão absurdamente nítido que, por um segundo, achei que fosse real.

Um suspiro de dor e tristeza me perpassa. As lágrimas inundam meus olhos e eu sei que preciso me controlar.

Fico de pé e, por um instante, tudo começa a girar. Me equilibro precariamente apoiando-me na mesinha de cabeceira. Não me alimentei noite passada, e por isso a vertigem.

Completamente desorientada, vou até o banheiro espaçoso do meu apartamento. Tiro a camiseta que uso para dormir e abro a ducha ajustando a temperatura. Preciso de um banho. Preciso que a água leve pelo ralo toda a tristeza que me consome. Fico de pé, me encarando em frente ao enorme espelho. Tenho vinte e sete anos. Minha vida que, aparentemente é perfeita, tornou-se um emaranhado de tristeza desde que perdi o grande amor da minha vida.

Desde então, luto diariamente contra uma doença silenciosa. A depressão. Algo tão potente que me imobiliza e me consome.

Quase ninguém percebe. Afinal, a mulher linda, bem-sucedida, a fisioterapeuta respeitada em um dos maiores Hospitais da América Latina, não tem motivos para se sentir triste. É assim que todos me enxergam. Mas não é assim que as coisas são.

Para ser sincera, a tristeza, que hoje é minha fiel companheira, sempre me rondou. E há anos, que travo uma batalha gigantesca para não deixá-la dominar meu mundo controlado de forma metódica para que eu não perca o controle das minhas emoções.

Durante os anos de faculdade vivi um verdadeiro inferno. Tinha dias que não tinha forças sequer para me levantar da cama. Sentia uma necessidade terrível de largar tudo. Essa necessidade duelava diariamente com a vontade de ser alguém na vida. Ajudar o outro a superar a dor. A lidar com as mudanças bruscas que a vida nos impõe. É, parece um paradoxo, mas nunca aprendi a lidar com a minha dor.

Adoeci ainda no ensino médio. No começo, era só a necessidade compulsiva de tirar a nota máxima, provar que era capaz. E, quando os resultados não vinham como desejava, eu sofria. Sofria em silêncio e me isolava mais e mais das pessoas. Assim, passei pelo ensino médio completamente solitária. Não namorei, não fiz amigos, nada. Eu apenas estudava. Compulsivamente.

Quando entrei na faculdade, as coisas ficaram um pouco mais graves e a tristeza passou a fazer parte da minha rotina. Eu odiava me sentir fraca, frágil. Odiava ter crises de choros, odiava demonstrar o que estava sentindo. Então, aprendi a fingir. Sorria quando queria chorar. Conversava quando queria me encolher num canto e ficar quieta. Me tornei uma exímia mentirosa.

Concluí minha graduação, e saí do país para fazer minha pós-graduação no Canadá. Foi, sem dúvida, meu maior ato de coragem. Procurava em outro ambiente a paz que sempre desejei. Mas chegou a hora de voltar ao Brasil e, depois de alguns meses batalhando pelo meu lugar ao sol, me tornei fisioterapeuta no hospital onde sempre desejei e, por algum tempo, isso afastou a nuvem negra que costumava me rondar.

Por um tempo, as coisas pareceram entrar nos eixos. A depressão estava sob controle, e eu conseguia não me sentir tão solitária. E foi nesse período que conheci um cara. Um médico oncologista pediátrico. Ele era uma dessas pessoas raras, que fazem questão de te ver bem.

John foi, durante dois anos, meu melhor amigo e meu grande amor. Com ele, as coisas de alguma maneira aconteciam de forma mais leve. Ele não enxergava apenas a mulher linda que todos enxergam. Sou uma dessas mulheres que nasceram com um bom gene. Durante toda minha vida, isso me incomodou muito. Por ser naturalmente introvertida, chamar a atenção não era meu esporte favorito. Acostumei-me a disfarçar meus pontos fortes, mas nem sempre conseguia.

John foi meu grande amor. Nós éramos inseparáveis. A atração entre nós dois foi praticamente instantânea. O sorriso dele era fácil e contagiante. Sempre bem-humorado, ele conseguiu me conquistar por estar sempre disposto a aceitar o que eu pudesse dar. Sem cobranças. Sem neuras.

E foi assim que, pouco a pouco, ele foi ganhando espaço em minha vida e nos tornamos um casal. Passamos a viver juntos e, para nossa alegria, engravidei e decidimos nos casar. Eu jamais me senti tão feliz na vida. Éramos um casal completamente apaixonados um pelo outro. Até que voltando de um plantão, juntos, sofremos um acidente de carro. Eu perdi em um único momento meu grande amor e meu filho. Repentinamente. Então, eu surtei.

Foi como se uma luz interna tivesse se apagado. A depressão voltou e me engoliu e praticamente voltei a apenas sobreviver. Lutar dia após dia, para não me afundar de uma vez no maremoto de tristeza que minha vida se tornou.

Perdê-lo foi terrível. Não ter mais seu sorriso e seu aconchego foi algo brutal para o meu estado de espírito. Sem falar na dor de perder o nosso filho. Voltei para a terapia e para a medicação. E, aos poucos, tenho conseguido retornar minha vida solitária.

Mas tomei uma decisão: nunca mais quero me envolver como me envolvi com ele. Perder alguém que amamos profundamente é simplesmente algo que pode te destruir. Foi o que descobri quando o sepultei.

Bob lambe meu pé descalço. Volto ao presente e me abaixo para acariciar sua cabeça macia e murmuro:

— Eu sei, já estou indo.

Entro no chuveiro onde a água escorre há alguns minutos, e tomo meu banho para me preparar para mais um dia de muito trabalho.

É nisso que sou boa... Ajudar as pessoas a reencontrar uma maneira de tocar a vida. Apesar dos pesares.

Mesmo que eu não saiba fazer o mesmo com a minha.


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