Capítulo XXX

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 Recostada em uma cadeira, em seu quarto, Kara estendeu as longas pernas, coçou o queixo e mirou o rosto pálido de Lena.

 Os cílios negros punham uma sombra clara no rosto dela, e as tranças sobre o travesseiro formavam como que uma moldura ao redor da cabeça. Kara notou que era a fronha que Lena bordara. Agora notava muitas coisas que antes passavam despercebidas. O medo de perdê-la abriu seus olhos e seus sentidos para a vida a seu redor.

 O crepúsculo tirava do quarto a luz natural. Com a cor cinza vieram memórias de seu passado e recordações do primeiro encontro com Lena, na torre da prisão. Nunca esqueceria como ela a enfeitiçara no momento em que viu sua cabeleira negra e suas feições angelicais.

 Endireitando-se, sentiu os músculos rígidos e doloridos. Mas a dor era gratificante. Se não tivesse pulado no rio Arno, seu precioso lírio não teria sobrevivido. Apesar de lutar contra a correnteza, Kara localizou Lena e a resgatou. Nadou até a margem, onde seus homens esperavam para tirá-las das águas.

 Um violento tremor a acometeu, e ela teve de vencer a sensação de pavor. A imagem dos lábios azulados de Lena na beira do rio a torturava mais do que as garras de um falcão; mesmo agora, horas depois da provação que haviam enfrentado. Jamais esqueceria aquele sentimento de vazio e desespero ao pensar que ela havia morrido.

 Arrasada, cobriu o rosto com as mãos.

 A porta se abriu, mas Kara permaneceu imóvel, incapaz de encarar quem quer que fosse.

 Clark parou no meio do cômodo, compadecido do sofrimento da prima. Nunca vira Kara sofrer tanto, nem quando os fantasmas de sua infância voltaram para assombrá-la.

— Prima? — chamou-a, com gentileza. — Jess vem trazendo  a comida.

 Kara balançou a cabeça.

— Como está Lena?

— Na mesma, Clark. O médico disse que poderá levar dias até que ela acorde. E teme que nunca mais se recupere por completo. Poderá ficar como Alex.

— Não, isso não acontecerá. Você deve ter fé.

 Kara fitou a esposa. O único sinal de vida era a leve respiração, mesmo assim difícil de perceber sob as várias cobertas que a aqueciam.

— Fé...

 Lena não dissera uma vez que tinha fé nela? Agora precisava ter fé com Deus.

— Lex está preso, esperando a decisão do Parlamento — Clark informou. — Convocaram uma reunião de emergência.

 Calada, Kara ouvia o primo falar sobre Alex e seu envolvimento com Lex, e sobre Colin, que ainda não fora libertado.

— Padre Bernardi está cuidando do funeral  de Alex.

— Lena não pode morrer, Clark. — Kara pareceu emergir de seus pensamentos. — O que farei sem ela? Sou uma concha vazia. Sabe que nunca disse que a amava? Por que é tão difícil pronunciar essa pequena frase?


 Kara olhou para o retrato sobre a lareira. Uccello captara a beleza de Lena em todos os aspectos. Ela sempre seria como o retrato e seria lembrada pelo olhar maternal em razão da criança que carregava no ventre.

 Ajoelhando na frente da cruz de ferro pendurada na parede acima do leito, Kara rezou:

— Kara?

 A loira se virou, achando que havia enlouquecido. Era a voz de Lena! Quando virou a cabeça e deparou com o olhar encantador da esposa, tomou-lhe a mão e a beijou com ternura.

— Querida, você está de volta!

 Lena acariciou o rosto da esposa e se ergueu um pouco.

— Meu peito parece pesado...

— E deve estar. Você bebeu metade da água do rio Arno.

— Será que terei de aprender a nadar?

— Quando estiver melhor, eu a ensinarei.

 Kara a afagava, com um nó na garganta. A indecisão e a tristeza que viu no semblante de Lena penetraram em seu coração. Na certa ela estava se lembrando do episódio do rio. Mas alguma coisa mais a perturbava. Kara tentou aliviar pelo menos uma de suas aflições.

— O bebê continua aninhado em você, querida.

— Temi que o tivesse perdido.

— Eu sei. — O colchão rangeu quando Kara se deitou ao lado dela. — Agora que você voltou, o nenê estará bem.

— E você, milady?

— Estou conformada com a morte de Alex. Talvez ela encontre a felicidade em um lugar mais elevado. — Kara passou o polegar sobre a mão da esposa. — Não sei como lhe contar...

— Lex morreu?

— Sim. Foi enforcado na praça do Palácio de Argo na manhã de ontem.

 Lena não chorou.

— Meu irmão sofreu demais, e em sua loucura fez outros sofrerem. Talvez, como Alex, ele encontre a paz em outro lugar.

— Rezo para que sim. Ah! Colin foi libertado.

— Que bom! Colin nunca teve o coração malvado como o de Lex. — Olhou para o céu escuro através da janela. — Papai jamais nos contou que mamãe sofria do coração. Por todos estes anos, como Lex, eu culpei a guerra, Lucy Lane e Winslow pela morte dela. Agora, porém, vejo como a ambição de Jimmy pelo o poder foi a causa do exílio de Winslow. Meu primo colocava seus interesses antes dos interesses da República. Você sabia disso, mas nunca me falou nada.

— Eu não podia, Lena, pois também tinha dificuldade em esquecer que você era uma Luthor. mesmo quando admitiu seu amor por mim, achei que não passasse de uma maneira de se aproximar de minha pessoa em benefício de Jimmy e da causa Luthor. Já me disseram que sou cega em assuntos do coração. E é verdade.

— Como assim, Kara?

 A loira virou a palma de Lena para cima e traçou linhas. Ficou em silêncio, e ela percebeu que a esposa estava ordenando seus pensamentos. Kara se manteve cabisbaixa durante minutos, até que, impaciente, ela perguntou:

— Está lendo minha mão?

— Talvez eu devesse. Assim mostraria as linhas para você, que descobriria como me sinto, já que minha língua se recusa a dizer o que deve ser dito.

— As linhas não podem mostrar como você se sente. Não precisa disso, milady. A emoção transparece em seus olhos.

— O que mais você vê, Lena?

— Uma mulher apaixonada.

 Aquelas palavras foram um choque para Kara, que tentou se afastar. Mas Lena a impediu.

— Não pode mais se esconder atrás do passado, minha querida. No fundo de sua alma sabe que é diferente de seu pai. Liberte-se dele, Kara. Você é capaz de amar, sei disso. — Lena bocejou e estremeceu. — Estou com frio. Aqueça-me. — Deitou nos braços da loira e as duas adormeceram.


O Lírio e o Falcão (Karlena) G!POnde histórias criam vida. Descubra agora