IV

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Estávamos no meio do outono e o vento gelado da noite me fez enterrar as mãos nos bolsos do casaco e me encolher nele. A caminhada até nosso prédio não era muito longa, demorava no máximo uns dez minutos, mas com o frio e a raiva que eu sentia, aquele pequeno percurso parecia a travessia do mar vermelho.

Noah seguia na frente tranquilamente, como se fosse a pessoa mais sem problemas no mundo.

Irônico quando eu lembrava que ele era o cara mais problemático que eu conhecia.

Eu o seguia com dificuldade; os saltos mutilavam meus pés e cada passo que eu dava enviava uma dor aguda pelas minhas pernas. No entanto, eu permaneci calada. Aqueles saltos eram as únicas coisas que haviam funcionado como eu queria naquele dia infernal, obrigando meu colega de quarto abusado e sem moral a precisar olhar para cima para falar comigo.

E não era só porque eu provavelmente teria que amputar meus pés depois que os tirasse que eu ia reclamar.

Finalmente, quando eu comecei a achar que não conseguiria mais me controlar e começaria a gritar de dor e a arrancar os sapatos no meio da rua, a tortura acabou. Chegamos. Noah abriu a porta do elevador para mim e depois estendeu a mão para que eu lhe desse minha chave, mas eu o ignorei e abri a porta do apartamento eu mesma, cambaleando para dentro com o máximo de dignidade que meus pés torturados permitiram. O que não era muita coisa. Mas aí acabei pisando em algo que me fez perder totalmente o equilíbrio e cair esparramada no sofá.

– Você bebeu? – ouvi aquela voz meio rouca perguntar e podia jurar que o maldito estava rindo com só um canto da boca.

Urrea tinha acabado de largar a sacola de comida em cima do balcão da cozinha americana e parou para me olhar. Peguei o objeto maligno que me fez perder o equilíbrio e o que restava da minha dignidade – e que podia ter me feito torcer um pé, eu ainda não tinha muita certeza – e joguei com força na direção dele.

Ele apanhou o chaveiro antes que batesse no seu peito.

– Obrigada por achar minhas chaves, Deinert – disse e sorriu para mim com os dois cantos da boca dessa vez. – Mas eu sugiro que você se sente como uma mocinha. Não que eu esteja reclamando, a vista daqui está ótima...

Endireitei-me no sofá e rapidamente juntei os joelhos – não que antes eu estivesse toda arreganhada, mas eu ainda estava usando saia curta.

– Eu sei que você não viu nada, Urrea – respondi, inclinando-me para tirar os sapatos.

Aleluia.

Tirei o lado direito e gemi quando vi que meus piores temores haviam se concretizado.

Não, eu não teria que amputar os pés. Mas eles estavam cobertos de bolhas latejantes e vermelhas que doíam como o inferno.

– Quer que eu diga a cor da sua calcinha? – meu super inconveniente e tarado em tempo integral colega de apartamento perguntou no meu ouvido antes de se sentar ao meu lado, colocando nossa comida na mesinha de centro.

– Quer que eu diga a cor que vai ficar seu olho depois do meu soco?

Ele jogou uma olhada ao meu pé mutilado.

– Se ficar tão ruim quanto isso aí, acho que vou precisar me preocupar.

Rolei os olhos e o ignorei enquanto tirava o outro sapato e gemia ao ver o pé esquerdo tão acabado quanto o direito. Que ótimo. Como eu faria para – como diria Heyoon – colocar minha bunda magra na galeria amanhã?

Noah se levantou do sofá e foi pegar dois copos de chá gelado para nós.

– Pode me trazer a aspirina? – pedi, com medo de até encostar meus pés destruídos no chão.

Perfectly Wrong | NoartOnde histórias criam vida. Descubra agora