18. Sodan

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As manhãs ficaram mais curtas e as noites mais longas conforme os dias de viagem se acumulavam. 

Desde a partida do moinho, o príncipe e suas companhias não encontraram mais nenhuma casa onde podiam se abrigar, como havia dito que seria sor Theobald, e passaram várias noites acampando em barracas erguidas das coisas que traziam na carroça em espaços de grama que encontraram no caminho. Acampar não era de todo mau para o menino, o conforto até era razoável, e não era a dor nas costas causada pela falta de uma cama que tirava seu sono, mas sim o trágico fim que havia tido Owall o moleiro.

Aquele era um segredo que só Marya não sabia, e continuava não sabendo, porque o menino não abriu a boca para falar nada sobre o homem, ficando quieto mesmo quando a lady perguntou aos soldados sobre o paradeiro do camponês, na manhã que partiram das plantações de trigo. Era como se nenhum dos soldados, nem mesmo o sor, se lembrassem de terem feito o que fizeram. Já o garoto perdia as horas claras que podia dedicar observando a paisagem que sempre quis ver para observar o guarda-real, esperando por uma atitude inesperada ou criminosa, e as noites ficava sempre acordado por horas com medo de vê-lo erguer sua espada mais uma vez.

Mesmo quando tentava ler um dos livros que o maege havia-lhe entregado antes de sua partida de Montanhalta, ele não conseguia preencher seus pensamentos com imagens novas, já que o sangue do moleiro jorrando sob o gélido luar ocupava o espaço de qualquer outra coisa. Folheava páginas e mais páginas dos livros, mas não conseguia se atentar sequer ao título ou aos capítulos, nem mesmo as frases inteiras que lia. Sua mais próxima companhia, lady Marya, via desde então alguma coisa de estranho no menino. Não estava hiperativo como de costume, mas muído em seu banco e sempre atento como um gato assustado. Tomada de preocupação, todos os dias desde o dia que deixaram o moinho para trás a mulher fazia questão de se sentar no mesmo banco que o príncipe, apesar de que ficassem um pouco mais apertados por isso, e lhe perguntava com carinho e cuidado: "O que se passa nessa cabeça de águia?"

Sodan sabia que ela percebia seu incômodo na forma como agia, mas fazia de tudo para mantê-la confiante de que nada havia acontecido. "Estou apenas lendo", ele respondia todas as vezes.

Era o suficiente para que ela nada mais perguntasse, sabendo do grande interesse do menino na leitura, mas no sétimo dia de viagem, entretanto, a lady reagiu diferente e não se deu por convencida. Ela não voltou para o outro banco, como fez das outras vezes, mas bisbilhotou por cima o livro para ver sobre o que o príncipe lia.

"As dunas de sal do norte? Não ache que eu acredito que você se interessa mais nisso do que tudo o que pode ver com seus próprios olhos lá fora. Ao menos, não para ler de novo. Estava lendo esta mesma página há três dias atrás, príncipe", ela disse com firmeza, enfatizando sua completa descrença. "Parece que se esquece do quanto eu te conheço. O que está acontecendo?"

Como se fosse encurralado pela mentira que contou, o menino desesperou-se em fechar o livro com força. Teve olhos e boca arregalados, o engolir em seco de quem não tem uma nova mentira pronta na ponta da língua. "Não há nada, eu juro pelos deuses."

"É bom em escapar, vossa alteza, mas não igualmente bom em mentir. Graças aos deuses, quem imagina o que conseguiria se fosse ardiloso assim?", sorrindo para ele, Marya tomou o livro das mãos do príncipe e segurou-as entre as suas. "Sua mãe acreditou em mim a sua segurança, então acho que você pode confiar em mim também. Eu posso não carregar o nome da Casa Heiral, mas ainda assim sou família. Nossas Casas estão ligadas por casamento e sangue e eu sou leal à minha família. Podemos contar tudo um para o outro. Se algo te aflige eu gostaria de saber."

Marya era alguém em que Sodan confiava, mas o menino também confiava no guarda-real antes. Havia aprendido que os cavaleiros eram homens benevolentes e justos, que suas espadas caiam somente sobre aqueles que mereciam julgamento. Deseja falar para alguém, passar suas perguntas e incoerências em busca de explicações que fossem plausíveis, e adorava conversar com a lady sobre seus conhecimentos, quiçá a amasse como família mesmo, mas em seu íntimo ele não achava que seria uma boa escolha. Não sabia se ela acreditaria em suas palavras ou se as julgariam como uma história de criança. Mesmo se ela acreditasse no que ele viu, o que poderia fazer? As noites acordadas fizeram Sodan perceber que queria chegar ao castelo Laranjeira o mais rápido possível e essa era a única maneira de acabar com o medo que sentia de estar perto de sor Theobald e seus soldados.

O Rei dos ReisOnde histórias criam vida. Descubra agora