Como em todas as manhãs, Siele acordou bem cedo em um remexer no berço com resmungos de fome. Não chegou a chorar, embora fosse logo, mas mesmo o mínimo ruído da sua filha era o suficiente para despertar Isandra do mais profundo sono.
Ainda entrava quase nenhuma claridade pelas frestas da janela fechada, indícios de que o dia estava se tingindo do azul da noite ao laranja de um sol com timidez que nasceria em breve. O castelo despertava junto ao astro, mas para uma mãe o dia e noite nem sempre eram distintos em seus afazeres. Mal se recordava da última noite em completo silêncio ou de acordar com o calor do dia no rosto. Aprendeu a ser amiga da noite, a dormir menos, e embora não fosse sempre a melhor experiência ou época de ser mãe, como aprendeu com Sodan, nada explicava o quanto adorava apenas encarar o inocente rosto de sua filha. A princesa amava-os ambos, de maneiras diferentes, e não havia em seu coração sombra nenhuma daqueles afetos. Da mesma forma que se preocupou em alimentar sua bebê, se preocupava em fazê-lo o mais rápido possível para que o mais velho não acordasse com os choros que viriam cedo ou tarde. Por isso ela não se permitiu permanecer na cama nada depois de acordada, se colocando de pé em meio ao breu do crepúsculo para ir até o berço.
Ela estava lá, com seus enormes olhos brancos abertos enquanto tentava tatear algo no ar, como se soubesse que seria a mãe, pelo som da cama rangendo ou do chão de madeira crepitando embaixo dos seus passos, mas a verdade era que a filha sabia quando ela estava por perto ou não, e mesmo a serva Wanda sempre dizia que a menina conseguia distinguir entre o colo da mãe ou o dela. Nunca foi uma surpresa para a princesa, que desde o primeiro dia de vida da filha entre os homens, e a constatação da sua cegueira de nascença, fez de tudo para criar outros laços com o bebê. Laços físicos, não visuais, para dar amor e tudo o que poderia precisar mesmo naquelas circunstâncias. A deficiência não era fácil, qualquer uma que fosse, principalmente naquelas duras terras. Teria tido uma vida terrível, caso a poupassem da morte, se tivesse nascido entre os plebeus, porque seria um corpo improdutivo para alimentar. Por sorte Siele era uma princesa, filha do futuro Rei, e a perspectiva de uma vida agradável ao lado de um lorde aliviava o coração da mãe.
Os pequenos dedos da filha abriam e fechavam, em ansiedade, enquanto esperava com fome. A princesa vestia uma longa camisola de algodão que cobria-lhe todo o corpo, mas bastou que deslizasse a manga pelo ombro para deixar exposto o seu seio direito. Pronta para amamentar, ela pegou a filha do berço e a acomodou em seus braços, e ela estava tão faminta que se deleitou imediatamente do leite materno e se acalmou, tão imóvel que parecia ter voltado a dormir. Em contrapartida, sugava com ferocidade e sua gengiva começava a machucar a pele com os dentes a se formarem. Ainda assim, eram momentos cheios de amor, onde ela podia olhar detalhadamente para o lindo e delicado rosto da filha. Parecia como todos os bebês, outros poderiam dizer, mas minha filha não, a princesa responderia. Seu rosto era único entre todos. Ela tinha grossas sobrancelhas escuras como as da princesa e dos Heiral eram, curvadas para baixo como se estivesse sempre em dúvida, e mesmo seus olhos leitosos da cegueira não perdiam nada do que acontecia ao seu redor. Siele era expressiva de uma forma diferente. Quando Isandra falava com a filha, ela olhava nos olhos, dizendo coisas que seus grunhidos indistintos não eram capazes.
Naquela manhã, porém, elas não conversaram porque a princesa não disse nada, nem chamou a filha pelo nome, apenas a ninou em seus braços enquanto se dirigia até a janela. A abriu com delicadeza e sem barulho, apenas uma fresta, e aliviou o cansaço do rosto na suave brisa matinal. O ar estava frio e agradável, o céu mais cinza do que de fato azul, carregado de nuvens escurecidas de chuva acima da cordilheira e para além do mar visível. Seria um dia de chuva e melancolia, ela percebeu, e era como ela mesma se sentia no íntimo. Ainda não sabia se sua decisão de levar Sonda para visitar o Rei tinha sido a melhor. O garoto era decidido naquele anseio, convicto e repetitivo na sua razão, e tendo convencido a mãe a tratá-lo com respeito e dignidade, ela fez a sua vontade. Embora fosse inteligente e perspicaz, Sodan era sensível também, e a princesa sentia que seu pequenino coração estava abalado verdadeiramente depois de ver o derradeiro fim que o Rei teria. Solidor era um avô perfeito para o garoto, um abrigo seguro, onde era amado e bem-vindo, e não havia dúvidas do tamanho da falta que sua presença faria na vida de todos do castelo.

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O Rei dos Reis
FantasiEm uma terra onde as bruxas foram caçadas até o seu fim e a governança dos homens foi concretizada, os mistérios estão apenas começando. No centro desses segredos estão as famílias Heiral e Ronso, a águia e o urso, dois dos mais antigos clãs do povo...