"É preciso acordar agora, vossa alteza. O dia brilha lá fora e o torneio logo começará", disse madre Enguene.
Seu aviso, entretanto, não precedeu seu ato abominável. Sem receio em sua firmeza e disciplina, a mulher escancarou as janelas do quarto provisório da princesa Celes no castelo dos Wattchers, preenchendo o quarto do ar gélido daquela manhã especialmente fria de outono.
Mesmo coberta pelas peles de ursos para se proteger da noite, a jovem se encolheu em sua cama. A cabeça estava pesada de sono e doía como se alguém a apertasse com força. Eram as consequências daqueles fracos para a bebida que se aventuravam em seu mundo, diziam os homens, e Celes não era alguém para degustar de cerveja como havia feito na noite anterior. Tinha sido sua primeira vez bebendo e provavelmente a última. Não parecia valer a pena porque mesmo abrir os olhos era um grande tormento.
Estava absorta na sensação de ressecamento que nem mesmo se lembrava do torneio que começaria.
"Apenas mais um momento, madre, pela misericórdia dos deuses", a menina pediu, afundando o rosto na escuridão do interior das cobertas.
Até que elas foram tiradas da menina. Sem a proteção delas, apenas das vestes de dormir, então finalmente sentiu o frio na espinha. Nem mesmo os raios de sol que apareciam singelos atrás do Vale Derretendo eram capazes de aquecê-la daquela súbita tortura.
"Não há mais tempo. Vossa majestade, o Rei, e vossa graça, a rainha, já se dirigem aos seus postos. Deixei-a dormir o tanto quanto pude, vossa alteza, mas é preciso que se apresse aos seus deveres. Devemos arrumá-la para todos", havia um cuidado em sua voz, de carinho e afeto, mas a firmeza era grande tal a conduta exemplar.
Contra a voz autoritária de madre Enguene, Celes nada podia fazer. Ademais, precisava cumprir com suas tarefas, e queria, porque e como esperou por dias e semanas a fio pelo momento em que o grande torneio em homenagem ao seu casamento acontecesse. Mal podia se segurar de animação por ver ele, o príncipe Maverick, lutando pela vitória e honra de poder homenageá-la na frente de toda a corte e lordes do reino.
Era um sonho se tornando realidade, então mesmo que quisesse dormir para sempre e que cada passo doesse como nunca havia experienciado antes, a princesa saiu da cama.
O Vigília não era sua casa, não tinha os confortos que o Quedaquente possuía, e apesar do desprazer que seria cruzar com Pedre Wattchers nos corredores, o aposento era tão luxuoso quanto poderia ser. Por isso, ao menos, a madre havia conseguido preparar um delicioso e quente banho das águas ferventes do abençoado Rio de Fogo para despertar a garota sem problemas algum.
A sua rotina da manhã foi como era quase sempre, mas livre de seu estado catatônico de antes, a princesa se via mais ansiosa do que o de costume. Talvez mais ansiosa até mesmo do que estivera no dia anterior, quando finalmente viu seu futuro marido pela primeira vez. Naquela manhã seria vista por todos de perto, pelos sulistas e vindos do norte, e haveria de estar mais perfeita do que sempre esteve para ser motivo de tamanhas festas e comemorações. Viriam ali para vê-la, assim como à seu irmão, casar-se diante dos deuses verdadeiros.
Por isso, naquele dia, ela escolheu usar seu lindo vestido invernal, mesmo que ainda não fosse inverno. Ele era grosso de pelos cinzas e brancos de ursos da neve de verdade, para aquecer o corpo e dar volume, e descia em camadas duplas com uma capa curta até um pouco abaixo da cintura. No cabelo ela quis que fosse feito o clássico penteado das mulheres sulistas, duas tranças grossas com todo o cabelo que se enrolam em espiral acima da cabeça em um coque alto, feito para resistir à umidade do ar da cidade real.
Encheu-se das jóias que tinha: um lindo par de brincos com gelo eterno e sua coroa, que repousava entre os fios loiros dos Ronsos. De frente ao seu espelho, satisfeita e sorridente pela felicidade estampada, ela se viu mulher, não garota. Lembrou-se das encorajadoras palavras de sua mãe, sobre ser quem ela era e queria ser, e teve certeza de que estava à altura do príncipe que a aguardava.
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O Rei dos Reis
FantastikEm uma terra onde as bruxas foram caçadas até o seu fim e a governança dos homens foi concretizada, os mistérios estão apenas começando. No centro desses segredos estão as famílias Heiral e Ronso, a águia e o urso, dois dos mais antigos clãs do povo...