2. Isandra

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As ondas batiam furiosas nas paredes rochosas de Montanhalta. Mesmo na torre real, a mais alta das sete do castelo, ela podia ouvir a maré brava e o som poderoso da água contra a pedra ecoando eternamente no horizonte.

O dia estava ensolarado, aquecendo o frescor do outono. Contemplando aquela bela vista e com o rosto confortado pelo calor, era quase como se ainda fosse verão e suas preocupações fossem coisas de um dia que viria. De olhos fechados, a princesa inalou profundamente o forte cheiro de maresia tão característico e depois expirou devagar. Abrindo os olhos escuros como jabuticabas, ela avistou um grupo de pássaros brancos no céu azul, planando em suas asas estendidas rentes ao mar para depois alçarem vôo nas alturas. Eram livres como ela já não se sentia a muito tempo. A princesa desviou os olhos da janela aberta para a bandeira que estava pendurada na parede atrás dela. Se destacava diante das tantas peles de animais que recobriam as paredes do quarto, toda preta, estampada com o perfil da cabeça de uma águia bordada em vermelho sangue.

Era o animal que representava sua família, o emblema que carregava no broche de ouro em seu vestido e nos estandartes. Voando mais alto, diziam as palavras de sua casa, mas não sentia como se pudesse voar livre como aquelas míseras gaivotas faziam. Melancólica pelos sintomas de sua angústia, a mulher voltou sua atenção ao chá que fazia. Ela pegou a chaleira de água quente trazida pelos servos mais cedo e despejou o líquido com cuidado dentro da xícara de porcelana. Preparou uma pequena peneira de pano, enchendo-a de flores brancas poligonais e afundou-a na água fervida. Logo o doce cheiro do chá de artemísia subiu, o vapor aromatizado forte tomando conta do quarto.

Quando a água ficou esbranquiçada e turva, a princesa retirou a peneira, deixando que escorresse para depois colocá-la em cima de uma bandeja de prata na mesa diante da janela. Ela tateou a xícara, averiguando a temperatura e depois levou-a para os lábios rosados. O gosto era doce como o cheiro, delicado e açucarado com sutileza. Era o preferido de Isandra, mas nem mesmo ele conseguia tirar o amargor de sua boca. Ela deu as costas para o dia, contemplando o interior do quarto, e se viu desolada no silêncio absoluto de sua companhia muda. Aquele era o terceiro dia desde que seu pai dormira, um corpo magro e estático afundado em um amontoado de cobertores em uma cama imensa para ele. Lembrava-se dele como um homem grandioso e de punho, mas a cada lua que iluminava o céu, ela percebia o quão mais fraco o pai ficava.

O segundo gole do chá já não era mais doce. Ele desceu quente e áspero, difícil de engolir, como tudo o mais que tentava comer ou beber. Ela deixou a xícara na mesa, indisposta, e foi até a cama do pai no centro do quarto. Era um grande móvel retângular esculpido em madeira escura, com quatro pilares, um em cada ponta, onde se estendia uma grande cortina de seda que descia pelas laterais. O lado que dava para a janela tinha a cortina presa no momento, permitindo que o ar matinal entrasse, numa tola tentativa de dar cor ao pálido rosto do homem em coma.

Isandra sentou na borda da cama com delicadeza, pousando a mão sobre o peito do pai coberto e contemplou seu rosto branco. Ele já não era mais o jovem Rei que fora alguns anos atrás, com seu rosto marcado por rugas de expressão e tempo em diversas partes, os olhos fundos e com bolsas. Suas sobrancelhas, antes dois grandes amontoados de pelos pretos, eram agora grisalhas, tinha a barba feita por praticidade e até seus cabelos já eram ralos e acinzentados se comparados a antigamente. O estado de saúde precário havia acelerado o envelhecimento e fragilizado o corpo, como o maege havia dito que seria, e a veracidade daquelas palavras estava bem diante dos olhos da princesa. Ela percebia as nuances da palidez do pai toda nova manhã, como o quão escuras se tornavam diariamente as manchas abaixo dos olhos, e os quilos que perdia por sua invalidez.

Quando acordado, o homem sofria de febres intensas e alucinações. Já naquele estado era apenas um corpo inanimado que ainda estava vivo. A expressão cadavérica e a respiração fraca eram um presságio de que não viveria por muitas outras manhãs, Isandra sabia.

O Rei dos ReisOnde histórias criam vida. Descubra agora