17. Isandra

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As criptas eram geladas independentemente do clima lá fora. Construída dentro da própria montanha, ficava embaixo do castelo real e tão profunda na cordilheira que raio nenhum de sol chegava a qualquer uma das tumbas. Qualquer som ecoava por centenas de túmulos, se replicando nas paredes rochosas e alcançando todo corpo que estava enterrado naquele lugar. Mesmo o menor barulho, como o caminhar dos insetos cavernosos, o gotejar de umidade que caia em alguns pontos do teto ou a prece silenciosa da princesa pareciam muito mais altos do que eram de verdade. As palavras da mulher soavam como coral nas criptas, sua voz se replicando várias vezes, mas ela não se incomodou porque havia apenas seu tio, o grande sacerdote e os deuses verdadeiros para ouvi-la. Não temia demonstrar seus sentimentos para a família ou o representante dos deuses, afinal era impossível esconder qualquer coisa do divino.

"Deuses que habitam o céu, glorificados são os vossos nomes, venham ao meu pai o levem ao seu reino, conforme é da vontade onipresente divina, seja na terra dos homens ou na dos deuses."

Isandra fazia sua prece de olhos fechados e cabeça baixa, mãos unidas ao próprio peito, e Edamor e o sacerdote acompanhavam seus gestos em respeito aos deuses e as tradições. Como elas diziam, o corpo do Rei havia sido abençoado pela cerimônia de sete dias antes de ser finalmente enterrado nas criptas para o descanso eterno. A princesa ainda se emocionava muito quando se lembrava do rosto do pai que nunca mais veria, agora substituído por uma tumba de pedra para sempre. O veria em pinturas e estátuas em breve, mas aquelas homenagens e citações nunca seriam o suficiente para fazê-la sentir seu pai de verdade. Nada seriam além de memórias do que um dia havia sido o homem nomeado de Solidor Heiral, o segundo de seu nome, protetor dos primeiros homens e do Reino da Terra Alta, assim como estava escrito em talhos na lápide à sua frente. A águia-real, símbolo dos Heiral, voava acima do nome do falecido Rei com suas enormes asas abertas, imponente como sempre era. Pedra, tinta, símbolos e lemas. Nada disso é carne e sangue e não pode ocupar o espaço vazio dentro de mim, ela pensou em dor pela saudade enquanto contemplava a imensidão de outras tumbas de pedra com seus dizeres como os da do Rei.

"Que os deuses o guiem", a voz de Edamor ecoou pela cripta encerrando a prece.

Também disse o grande sacerdote: "Que os deuses o guiem."

O representante dos sete deuses e do Septágono no Reino da Terra Alta era o grande sacerdote Valerio, um homem um tanto mais baixo do que comum, menor que Edamor e quase do mesmo tamanho da princesa. Ele tinha uma barriga redonda tão grande que nem suas vestes do mais rico tecido de Bassan conseguiam esconder a protuberância e sua cabeça careca era coberta com uma espalhafatosa e encravada de jóias mitra, um chapéu clássico da sua posição religiosa. As cores das suas vestes eram tão variadas que confundiam a visão, um arco-íris completo em menção aos deuses, com tantas pedras divinas costuradas no meio que simplesmente refletia luz quando se movia, mesmo na escuridão das criptas, como um enorme lustre de cristal. Tinha rugas de idade e bolsas gordas que abaixo dos olhos, pele branca e olhos pretos escondidos por pálpebras sempre caídas.

Ele colocou sua mão repleta de anéis no ombro caído da princesa com conforto, mas pressa, como se tivesse pouco tempo para cordialidades sentimentais. Para homens de extrema fé a morte não era nada além de uma passagem.

"Chore as lágrimas que tem para dar, vossa alteza, e a Matriarca terá misericórdia da sua dor feminina", ele disse em conselho, afastando-se dela e do túmulo do Rei em seguida. Conforme andava fazia tanto barulho quanto uma armadura, seus colares e jóias balançando com os movimentos sempre muito espaçosos pelo seu tamanho. "Eu cumpri meu dever com os deuses, mas agora preciso cumprir o meu para com os homens."

"Grande sacerdote", chamou o capitão da guarda-real em respeito enquanto também se afastava do túmulo. "Deixemos minha sobrinha viver o luto sem se preocupar com as questões do reino."

O Rei dos ReisOnde histórias criam vida. Descubra agora