19. Celes

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Havia festa no grande salão do Vigília. A última antes do seu casamento.

Nas paredes o estandarte branco e cinza dos Ronso predominava, mas havia espaço de honra para o símbolo dos convidados. Ao lado de cada ursa coroada, no lugar da coruja marrom dos Wattchers, a carpa verde dos Guado nadava no azul límpido das águas da Terra Média. Em todos os bancos, cadeiras e mesas, os homens e mulheres de ambos os reinos se misturavam e comemoravam juntos.

Celes vestiu seu melhor e mais leve vestido naquela noite atípica de fresca para o outono, sempre em sua imagem de uma dama impecável. Não chegava aos pés do luxuoso de noiva que havia encomendado com os melhores costureiros da cidade real para o seu grande dia na Catedral de Feanor, onde prometeria sua vida e dedicação diante dos seus verdadeiros ao seu futuro senhor, mas ainda assim era belo de uma forma como não se costumava ver no Sul. Não tinha peles de urso ou lobos, tampouco espessas camadas para bloquear o frio das Terras Baixas, mas tinha sido feito em tecido fino e quase translúcido, que repousava sobre um outro de cor bege claro como o tom de sua própria pele, como se parecesse quase nua, e pesava tão pouco que esvoaçava conforme andava. Mesmo quando sentada à mesa, a ser servida de um banquete como pouco se via no reino, o vestido reluzia como a lua que brilhava cheia no céu estrelado.

Parecia mais nortenha que sulista, como andava se dedicando nos últimos dias para ser.

Serviam no jantar tudo que havia de melhor nos estoques do reino: lagostas de mais de sessenta centímetros cozidas nas mesas, com molhos de mel, coentro, mostarda e outros temperos trazidos do antigo continente; vôngoles de todos os tamanhos servidos em sopas e caldos, ou como petiscos em espetos; ouriços abertos e dispostos para se comerem puro; além de costela de porcos assadas inteiras com frutas para aqueles que não estavam dispostos a degustar das iguarias. Entre os sulistas, entretanto, era nítido que todos comiam com deleite uma refeição farta como não tinham nos dias comuns, com as bocas quase sempre cheias demais para falar, e quando não, assim faziam. Em todas as mesas as conversas eram altas e animadas, regadas à cerveja e vinho, e mesmo os homens saciados já sonhavam com o que haveriam de comer quando fosse o dia do casamento. Se um dia antes dele já era bom desse tanto, suas cabeças preocupadas sempre com o frio mal conseguiam imaginar o que poderia ser ainda melhor.

A noiva que haveria de estar estonteante de alegria, diferente dos convidados, pouco aproveitava do seu prato. A princesa tinha sequer tocado na comida desde que havia sido feita, e uma garra inteira de uma das lagostas desmembradas ainda repousava em sua louça. Mesmo assim não sentia fome. Em sua cabeça, onde repousava a brilhante coroa sobre seus cachos dourados, muito mais se passava do que encher o estômago e beber. Pensava em seu casamento, certamente, mas pensava ainda mais em algo que nunca tinha pensado, com um peso novo para sua ingenuidade. Pensava na sua felicidade e no seu futuro.

Nas vezes que olhou para frente e não para as próprias mãos, viu seu prometido, o príncipe Maverick, na mesa que reunia o Rei Thorynt do Reino da Terra Média e sua família, a Casa Guado. Não o encontrou feliz em nenhuma das vezes. Ele vestia-se lindamente como todos os nortenhos se vestiam, com roupas de tecidos trazidos em navios e bordados de ouro únicos e não usava mais os curativos no nariz quebrado pela sua derrota no torneio. Seu nariz, entretanto, ainda era prova incontestável da sua humilhação. Ele continuou ligeiramente torto mesmo depois de curado, e um tanto quanto inchado, deixando aquele lindo rosto pelo qual a princesa tinha se encantado quando o viu na sua chegada carregado para sempre de uma insatisfação que transbordava até mesmo sua eloquência muito bem treinada.

Talvez as memórias o tivessem transformado aos olhos de Celes ainda mais do que o nariz. As rudes palavras que recebeu do príncipe em resposta aos cuidados que quis dar ao seu prometido quando ele estava ferido ainda ressoavam em sua cabeça. Palavras horríveis e odiosas. Palavras que diziam que ele não a amava. Palavras que haviam-na transformado também, obscurecendo seus olhos brilhantes que sonhavam com um amante que a tivesse como a deusa violeta em carne e mulher, para adorar e proteger, e tornando-a infeliz como se sentia diante do fatídico destino sobre o qual finalmente tinha descoberto a verdade.

O Rei dos ReisOnde histórias criam vida. Descubra agora