No Corujal, a torre mais alta do Vigília, o Rei contemplava seu reino.
Enquanto via à sua esquerda o grande caminho da Estrada do Tratado a percorrer pelo meio o Vale Derretendo até as terras vizinhas, à direita a cidade real se estendia por quilômetros, viva como nunca antes tinha presenciado, com comemorações e festança a chegar em seus ouvidos embora tão distante do chão. Mesmo para além das arquibancadas e barracas montadas para aguardar o começo ansiado do segundo dia do grande torneio, a alegria do povo estava até mesmo nas palafitas; nas casas que boiavam no rio; e onde mais o ar nublado já não permitia mais enxergar, porque entre as vielas já se dissipou que o casamento traria o primeiro inverno com comida plantada em terra fértil.
O Rei, entretanto, não sorria pelas suas conquistas. Ele estava triste mas ocupado demais com seus deveres, com coisas a se acumular em seus pensamentos, pelo que havia acontecido com sua filha mais nova, pelas desavenças geradas pelo conflito do primogênito, a fúria pela desobediência do segundo filho, o novo pedido pela união com a Terra Média e com o que ainda teria de fazer pelo reino. Lutava contra aquele sentimento, porque precisava ser mais do que um pai aflito, mas às vezes era difícil manter-se tão frio. Seu semblante era carregado de preocupações que pesavam suas sobrancelhas loiras caídas e seus olhos, antes deslumbrados, estavam ofuscados pelos fardos que carregava solitariamente nos ombros tensos.
Fardos que pertenciam a um Rei e nenhum outro homem mais.
Quando sentia-se assim, cansado de governar acima de qualquer coisa, questionando-se sobre sua dignidade em ocupar o trono e cumprir seus deveres, recorria aos deuses verdadeiros e sua verdade divina. Todas as manhãs, geralmente. Era um remédio porque, como Bernabas havia sido escolhido pelas divindades antes para reinar, só pela escolha dos sete é que Eddiemund também foi coroado. Aquela crença era o que dava-lhe forças para continuar a ser Rei, superando os problemas e conflitos que ainda tinha dentro de si, coisas que pertenciam à cabeça e coração de um homem qualquer e que não podiam corromper a mente de um governante.
Mas ali, longe de Quedaquente, ele não tinha seu templo nem qualquer estátua para rezar. A única companhia que tinha naquela tempestade era a de sor Clevor da casa Mudborn, o capitão da sua guarda-real.
Vestido em uma armadura completa e com capacete, o homem era uma muralha silenciosa. Permanecia ao lado de seu protegido em todos os momentos, sempre com sua postura impecável e doutrina rigorosa, tão diferente do garoto que outrora vivia na Baixada da Lama e se tornou o melhor amigo do Rei. Sua lealdade era inquestionável, sabia Eddiemund. Não por dívidas ou por títulos, mas pela parceria que tinham um pelo outro desde que as aventuras do terceiro príncipe Ronso pela cidade real tinham começado tantas estações antes da coroa pesar sobre os cabelos dourados.
Em Clevor, Eddiemund via um irmão. Mais do que um irmão de batalha, como se consideravam aqueles que lutavam lado a lado como também já tinham feito, mas um irmão que ele escolheu por amor. O único que ainda tinha. Era alguém que o conhecia bem e com quem podia compartilhar seus maiores pesares sem receio de parecer fraco. Sem sua amada ao seu lado para aconselhá-lo, sem os deuses como alavanca para impulsioná-lo em seus próximos e decisivos passos, foi no amigo que o Rei buscou ajuda.
Repousando a mão sobre a bainha de sua espada Silencialmas, cansado de vislumbrar a felicidade daqueles que desconheciam sua tristeza, o Rei encarou seu capitão escolhido.
"Responda-me uma coisa, sor Clevor", ele pediu.
"Como ordena, vossa Majestade", respondeu o cavaleiro com uma reverência.
"Dentro dessa sua armadura dourada, escondido nesse capacete, por debaixo de todo o metal e deveres que carrega consigo desde que te nomeei, ainda há meu velho amigo Clevor que conheci na Baixada da Lama?", Eddiemund indagou, buscando os olhos escuros do homem por debaixo da viseira.
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O Rei dos Reis
خيال (فانتازيا)Em uma terra onde as bruxas foram caçadas até o seu fim e a governança dos homens foi concretizada, os mistérios estão apenas começando. No centro desses segredos estão as famílias Heiral e Ronso, a águia e o urso, dois dos mais antigos clãs do povo...