Costurava a quarta boneca. Ainda estava incompleta, mas ainda assim quase totalmente pronta. Um ponto aqui e outro ali faltavam para terminar, e não se passaria mais do que aquele luar naquela tarefa.
Roselin era boa costureira, como boa em quase tudo o que se cabia a uma mulher fazer, mas nunca antes tinha estado tão absorta na agulha e linha. Trancada naquele quarto, pouco havia para se fazer e ver o tempo passar. Era aquele o sexto pôr-do-sol que contemplava apenas da janela, a sentir nada senão o fedor de dejetos e doenças. Desde o acidente a rainha não saiu do lado da cama de sua filha mais nova por nenhum instante sequer, como havia dito que seria, e suas noites e dias eram dedicadas exclusivamente para velar o sono da menina e para seguir na sua costura de seus panos e palhas. Tentava de tudo para se distrair dos tormentos insistentes de sua cabeça, mas mesmo as bonecas ou o trabalho manual não eram distração o suficiente.
A solidão e o silêncio a consumiam diariamente. Poucas visitas receberam a mãe e a filha nesses dias. Muitos vieram no primeiro dia, verdade: seu marido; seus outros filhos também, Adel, Celes, Lauro; lordes e convidados pros quais teve de fingir alguma beleza; e mesmo as irmãs da rainha estiveram lá, depois de tantos invernos longe. Apesar disso, as visitas acabaram-se ali, no primeiro dia, e nenhum deles voltou depois por seus motivos. Pois a tristeza era dura demais para aguentar; pois o reino precisava seguir; pois havia o torneio, as festas e os casamentos para se comemorar apesar dos pesares. Nada daquilo era capaz de amenizar a tristeza e o sofrimento da mulher. Era ainda pior, já que se sentia abandonada em seu luto materno enquanto todos os outros em sua volta estavam felizes e bêbados na maioria do tempo.
Nos infindáveis dias que se seguiram, Roselin teve a companhia recorrente de apenas dois conhecidos que compartilharam de seus momentos mais devastadores - mesmo que contra a vontade, pois se tratava de dever. Com nenhum deles a rainha trocou mais palavras do que os necessários cumprimentos, pois para ela não lhe eram nada além de um velho e um cavaleiro.
Um deles, o cavaleiro, era o sor Keith Wattchers. O homem era um dos sete cavaleiros membros da guarda-real, aquele a quem o Rei Eddiemund tinha imposto o dever de proteger a vida da princesa Agyne Ronso como escudo juramentado. Alto e forte, poderoso espadachim reconhecido por todos, mas seu rosto estava sempre coberto por seu capacete e seu fardo. A rainha não via as expressões do homem, mas sabia, pela sua voz e postura, que por trás da gaiola de metal ele estava cansado daquela morbidade, exausto das lágrimas da mulher e enjoado de guardar uma porta de madeira. Vivia pela sua missão, e a cumpria ali, do outro lado do quarto, sempre imóvel e pronto para dar sua vida pela criança em uma batalha. Em batalha, pois era o que era, um cavaleiro. O homem estava pronto para aceitar que não havia o que ele pudesse fazer. O metal de uma espada nada podia contra o Rio de Fogo, e era claro que já considerava, como tantos outros, a morte iminente da princesa uma verdade concreta. Sua presença era, na maioria das vezes, um presságio mais obscuro do que outra coisa. Como um guarda que sela um túmulo, ele não dizia nada além dos típicos títulos. Quando a via, chamava-a por vossa graça, e quando se despedia, por minha rainha.
A outra companhia que ela tinha era a do maege Duront. O sábio visitava o quarto todos os dias, duas vezes durante ele, uma nos primeiros raios da manhã e outra ao entardecer. Sempre trazia consigo seus meles de abelha, sucos de frutas e comidas pastosas nos pequenos frascos de vidro que se escondiam em sua longa túnica. Eram a comida de Agyne, o que ele usava para nutrir o corpo adormecido da criança. Ademais, vez sim e vez não durante as suas visitas, o maege banhava a menina com panos umedecidos e limpava as fezes e urina, para depois trocar os diversos curativos também, substituindo as ataduras velhas por novas e limpas, untadas em pasta verde e remédios curativos. Trabalhava com cuidado e a paciência de um velho, uma lentidão esperada pela idade do maege, o que só tornava a sua presença ainda pior. A mulher detestava ver a filha desnuda, repleta de hematomas e cicatrizes, com a pele grudada nos ossos e os olhos fundos em um rosto cadavérico, e era exatamente aquela vista que tinha enquanto Duront fazia o seu minucioso trabalho. Aqueles momentos eram os piores, e entre o maege e a rainha também não trocou mais do que cordiais palavras de boas-vindas.
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O Rei dos Reis
FantasíaEm uma terra onde as bruxas foram caçadas até o seu fim e a governança dos homens foi concretizada, os mistérios estão apenas começando. No centro desses segredos estão as famílias Heiral e Ronso, a águia e o urso, dois dos mais antigos clãs do povo...