Anestesiada

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Alguma coisa estava errada, eu soube assim que abri os olhos naquela manhã. Não me sentia pertencente ao meu próprio corpo, anestesiada. Não eram os meus pés que se arrastavam ao chão, nem meu rosto que eu lavava diante do espelho, muito menos meu próprio peso que eu sustentava quando me sentei na mesa do café. As conversas pareciam meros zumbidos a minha volta e as palavras em resposta nos meus lábios soavam desconexas.

Incomodada com a sensação, tentei me ligar de volta a terra, feito Peter Pan costurando sua própria sombra. Não funcionou. Eu ouvi Hanna enumerar as atividades do dia, entre elas, buscar minha mãe e Flê no aeroporto após o almoço. Como não viera no jantar de ensaio, havia meses que eu não via Fleur, sempre considerada como uma segunda mãe para mim. A emoção momentânea deu um pique nos meus batimentos cardíacos e por um momento submergi. Apenas para retornar ao limbo meio segundo depois.

Em algum canto da minha mente eu tinha consciência de que, por alguma razão, precisava ver Justin, mas ele estava trabalhando. Ou falando com Roger e o oficial Sommers, ou os dois. Então tive que lidar com a insatisfação dos meus interlocutores quando pedia que repetissem a frase até entendê-la conscientemente ou ao menos perceber que estavam falando comigo.

— ...Faith? Vamos? — Han enlaçou o braço o meu, tentando me fazer andar para entrar no carro. Jazzy e Jax esperavam ansiosamente lá dentro, eles adoravam minha mãe, é claro que queriam ir junto ao aeroporto, ela era muito mais mole com eles do que foi comigo e Caleb.

Assenti rapidamente, franzindo a testa, sem saber por quanto tempo estava empacada ali. Hanna me deu uma olhadinha desconfiada de soslaio antes de pular para o banco do motorista. Também não me lembrava de quando havíamos combinado que ela conduziria o veículo. Uni minhas mãos no colo, quase contente por finalmente sentir alguma coisa ao constatar que as palmas estavam geladas. Eu só podia estar nervosa por encontrar minhas duas mães dali a poucos minutos. Eu havia conversado com Flê ao telefone sobre o noivado, oportunidade em que ela ofegou de choque e praticamente ficou sem palavras. Bem, eu a conhecia o bastante para saber que se expressava melhor pessoalmente mesmo, então só saberia agora o que ela de fato pensava.

O avião não estava atrasado, e eu quase desejei que estivesse. Muitos sentimentos contraditórios em um dia só. Assim, após uma espera planejada de quinze minutos, supervisionando as crianças que não paravam quietas — pulando de uma lojinha para outra — vislumbramos as duas mulheres saindo na sala de embarque. Fleur havia convencido meus pais de que elas não precisavam vir de jato particular, de forma que Bryan pudesse utilizá-lo mais tarde. Eu duvidava muito que tivesse conseguido escapar da classe executiva também, mas sabia que tentaria. Em geral minha mente costuma ser criativa, contudo, nem com o maior esforço poderia visualizar Eleanor na classe comum.

Eleanor arrastava sua mala preta de rodinhas, combinando com seus trajes sociais, protegidos por um sobretudo. Por sua vez, Fleur carregava uma mala de mão, florida, cujo tamanho não ultrapassava metade da mala de Eleanor. Utilizava um vestido preto simples até as canelas, meia calça grossa preta, um cachecol marrom adornado em seu pescoço e uma blusa de frio estufada cinza. Botas marrons aqueciam seus pés que caminhavam incertos pelo piso. Ela não costumava fazer muitas viagens. Só havia vindo para o Canadá uma vez, em meu aniversário.

Seu cabelo estava organizado no coque conhecido, ainda mais grisalho do que eu me lembrava, as marcas de expressão em sua pele dois tons mais escura que a minha pareciam mais acentuadas. A soma dos detalhes atingiu minha percepção de que Fleur estava ali e atingiu diretamente minhas glândulas lacrimais. Enfim sentia-me no chão. Coloquei as mãos na boca ao arquejar, percebendo que eu sentia sua falta numa proporção infinitamente maior do que meu consciente me apresentava. Corri antes que ela pudesse me ver, disparando entre as pessoas sem me importar com os olhares.

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