Fly away

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Travor Scott era filho da minha professora de Inglês do primário. Esse detalhe era mais importante do que o fato de que ele era meu colega de classe também. Eu era um dos alvos preferidos dele e de sua turma na escola, afinal, os cdf's nunca são muito bem vistos, principalmente quando não passam cola e ainda denunciam o filho da professora... Sim, eu não era muito perspicaz com estas coisas de posição social dentro de um grupo.
Não que ele me batesse ou nada assim, não! Era mais uma pegação no pé, bilhetes escrito "chata" no meu estojo, mas nada demais. Não era um amigo, mas não era um inimigo. A mãe dele me adorava... e ele tinha ciúmes por isso. Coisa de criança mesmo.
Quando eu o vi, ali na porta do teatro naquela tarde de domingo, quase não acreditei: Travor era um dançarino! Como ele não morava no orfanato, só estudava lá, eu não o conhecia tão bem assim e não sabia que ele sequer entendia o que era direita e esquerda! Agora ele estava ali: collant e polainas. Era um rapaz, mas um rapaz de collant. Quis rir quando imaginei a cara da mãe dele... ela sonhava que ele fosse engenheiro...
Nestas situações, minha primeira reação sempre era fugir: as interações sociais me deixavam bem nervosa, apesar de eu ter melhorado. Eu encarava como um desafio e, vendo assim, me forçava a vencê-lo:
_ Travor?! É você mesmo?
Desci pela lateral do palco, e fui caminhando, com o ar mais confiante possível até ele. Parecia que tinha visto um fantasma.
_ Não?! A garota Jackson? É você mesma??
Eu tinha esquecido como a voz do Travor era alta e como ele era pouco discreto...
_ Sim, sou eu Travor. Que prazer revê-lo! Como tem passado?
_ Ah... falando como uma senhorinha do século passado, só pode ser você mesma! Como você tá Sarah?!
O garoto de collant disse isso e me envolveu em um abraço. Conversar ok. Aperto de mãos? Tudo bem. Mas este nível de contato era extremamente desconfortável para mim. Acho que ele percebeu, pois me soltou logo.
_ Por dentro parece a mesma Sarah, estou certo?
_ Sim, quase certo. Estou um pouco mais falante, não percebeu? Até vim falar com você!
_É, é verdade... Você está trabalhando aqui? Achei que ia ficar lá na África com os elefantes e as hienas.
Típico as pessoas pensarem que o continente africano todo é uma selva...
_ Pois é... até as girafas já aprenderam a cantar, então não tinha mais o que fazer...
_Olha só!! Senhorita Jackson fazendo piada!!! Que evolução!!
Mas que droga... Ele ia mesmo ficar lembrando do meu apelido?
_E você parece que não mudou nada né? Ainda parado nessa de"senhorita Jackson"?
_Por quê? Agora que o cara está no topo no mundo você não curte mais?
Sim, curto. Muito. Ouço os dois últimos discos quase todos os dias enquanto organizo o apartamento. Sim, ainda tenho os posteres nas paredes internas do guarda roupa. Sim, ainda acompanho tudo que sai sobre ele. Mas não ia dar este gostinho ao Travor...
_Ah... gosto sim, mas não como antes? Ele lançou disco novo né?
_Lançou sim... E agora eu sempre lembro de você, senhorita Jackson. Estou trabalhando com o cara.

"Oi? Que cara? Como assim? Explica direito. Você trabalha COM ele ou PARA ele? Conhece ele mesmo, já viu de perto? Conversou?"...

Esses eram meus pensamentos, e eu precisei usar todo meu controle emocional para estabilizar a voz, manter a respiração e o batimento cardíaco, e entrar no papel de garota bem resolvida e tranquila:
_Ah... sério Travor? Que legal! Como dançarino?
_Sim... na verdade eu trabalho com o Michael Peters, que fez a coreografia do vídeo que ele está pra lançar... eu dancei no clipe também, mas foi mais uma pontinha...
Se gabando e exagerando. Sim era o Travor. E ele deve ter notado minha cara de " ah, é isso...".
_Mas agora parece que o Michael quer lançar mais um clipe de dança e o Peters vai coreografar de novo. Você voltou a dançar? Em breve ele vai fazer as audições para os dançarinos e...
_ Não, não danço mais... Faço umas pontas como atriz e cantora de apoio, mas dança mesmo não dá para mim...
_Ah, que pena... Mas olha, me diz como eu te acho. Parece que este clipe novo vai ser coisa grande. Ouvi ele falar em equipe de maquiagem profissa, em diretor de cinema... Quem sabe precisem de algumas figurantes fazendo o papel de fãs enlouquecidas? Este você já sabe fazer bem!
Travor riu tão alto que lembrei que nos encontramos no show dos Jacksons da turne do disco Destiny. Para minha infelicidade, foi ele quem me viu... Eu não teria gritado nem a metade do que gritei naquele show se eu o tivesse visto.
_ Tão agradável você Travor! Mas agradeço. Trabalho é trabalho. Estou morando perto do orfanato, mas você me encontra todas as tardes lá na escola: peguei as aulas de teatro, então é só ligar lá depois das 13h que você me encontra.
_Sarah... sempre voltando, mesmo quando a gente acha que você vai tentar voos novos... Não enjoa daquele lugar?
_O orfanato é minha casa Travor, é como estar na casa dos pais. Aliás, e sua mãe? Como está?

Acho que ela continuava pegando no pé dele...
_Ela está bem. Cheia de saúde para brigar comigo toda vez que me vê com as roupas de dança... Mas está acostumando. Bom, aulas a tarde na escola do orfanato, certo? Vou lembrar disso e te aviso se pintar algo por lá.
_Beleza! Manda um abraço para ela e diga que tenho saudades!
_Vou dizer que você mandou um aperto de mãos, porque se eu falar abraço ela não vai acreditar que é você.

Caminhei até meu carro com os pensamentos distantes... "sempre voltando, mesmo quando a gente acha que você vai tentar voos novos". A frase ficou ecoando na minha cabeça e me deixava triste e com raiva ao mesmo tempo... Para quem sabe de onde veio é fácil deixar tudo para trás e voar, mas pessoas como eu precisam ter vínculos... Se eu não tenho com pessoas, preciso ter pelo menos com lugares.
Quando liguei o rádio, Beat it estava no seu riff inicial de guitarra... Tocava demais na rádio, em todas as rádios... Se Travor não fosse tão metido e até um pouco mentiroso, ia querer saber como foi gravar um clipe com ele...
Essa era uma parte da minha vida que, de certo modo, destoava de todo o resto. Eu era exata, sempre escolhendo a razão. Nada de fantasias, tudo muito pé no chão. Então, ser apaixonada por um astro do pop, que agora estava ficando ainda mais mundial, parecia totalmente ridículo. Mas era quase inevitável. Desde pequena, quando fui ver quem era o anão disfarçado de criança a quem me comparavam, eu sentia uma empatia tão grande por ele... chegava a me sentir culpada, pois não sentia a mesma empatia pelos meus colegas de orfanato, gente que dormia e acordava nas camas ao lado da minha, mas sentia por aquele garoto. Lembro que quando assistíamos ao programa dos Jacksons na CBS eu cheguei a discutir com uma das minhas "colegas de grupo". Eu via Michael fazendo alguns números, principalmente os mais cômicos e via uma baita tristeza nos olhos dele. Um dia, caí na besteira de dizer isso e quase fui massacrada. Mas eu não conseguia ver que ele gostava mesmo de fazer aquilo... Sei lá... Era uma sensação. Agora, quando ele dançava, aí a coisa era muito diferente! A primeira vez que fui a um show deles eu não conseguia piscar: ele cantava e dançava de um modo tão hipnotizante que parecia flutuar no palco! Os olhos dele brilhavam mais do que roupa do Marlon... Ao mesmo tempo que mostrava uma força e ferocidade incríveis, era terno, suave. Lembro que eu via ele suando tanto que fiquei preocupada se ele estava bebendo água o suficiente para manter-se hidratado...
A lembrança me fez rir...
Nem me dei conta quando cheguei em frente ao prédio. Tranquei o carro e subi a pequena escadaria. Meu apartamento ficava no 1º andar: subir muitas escadas às vezes me incomodava... A senhora Jhonson estava ali, como de constume, sentadinha na mesinha perto da escada do hall, como se fosse a porteira. Ela era proprietária de quase todos os apartamentos ali no prédio que o falecido marido havia construído tantos anos atrás. Agora ela, sozinha, ia administrando, alugando, vendendo alguns... Chegou a oferecer-me o apartamento por um bom preço e eu estava tentada a aceitar. Eu não sabia se ela tinha filhos ou não... sempre ali sozinha, fazendo seu crochê e vigiando a hora que cada um entrava e saia. Como meus horários eram todos muito regrados e eu estava sempre sozinha, isso pouco me incomodava.
_Boa noite senhora Jhonson! Como está hoje?
Primeiro ela me ouviu, depois me encontrou com os olhos, que sorriram antes dos seus lábios finos.
_ Oh querida, boa noite! Quando vamos acertar a venda do apartamento para você?
_Em breve! Deixe-me eu estar mais estabilizada nos empregos e receber os cachês que preciso, aí vendo o carro e nós conversamos, ok?
_Ah menina,,, você vale ouro! Se eu tivesse um filho que fosse metade de você eu estaria feita! Está certinha: planejamento é tudo, ainda mais para uma moça sozinha.
_Com certeza! Boa noite! Coloque um casaco que já está esfriando!
Toda vez ela fazia a mesma pergunta, eu respondia a mesma coisa e a tréplica era a mesma: planejamento é tudo para uma moça sozinha...
A frase incomodava, mas ela estava certa: eu era sozinha e precisava me cuidar. Às vezes eu queria sentar ao lado dela e perguntar sobre seu passado, sobre como foi que eles construíram aquele pequeno prédio, saber se ela tinha filhos... Mas ficava pensando que eu não conseguiria terminar o assunto e ela se magoaria quando eu quisesse levantar e ir para casa, e pensar em magoá-la me deixava triste.
Entrei em casa e acendi as luzes. Tudo igual: a pequena sala com a mesa redonda para as refeições, o espaço da geladeira e do fogão de duas bocas, o armário de metal com algumas partes enferrujadas. O sofá-cama na outra ponta, com a mesinha de TV a sua frente, o pequeno closet adiante e na outra extremidade a porta do banheiro. Bem pequeno, mas mais que suficiente para quem passou a vida toda dividindo até o sabonete. Guardei o casaco e as botas, e enquanto me despia para tomar banho, coloquei Michael para cantar Shake your body para mim... Precisava me animar depois de tantos pensamentos profundos.

Michael Jackson - E se... - lado AOnde histórias criam vida. Descubra agora