2300 Jackson Street - por MJ

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A água da banheira já não estava quente e eu começava a me sentir gelado. A toalha que Sarah tinha dobrado para que eu encostasse a cabeça ainda estava ali, e decidi me levantar.
    - Ninguém disse que eu tinha que ficar aqui...
Resmungando sozinho, me levantei e enrolei o quadril na toalha, ainda sem saber o que faria. Foi quando olhei para frente e percebi um espelho na parede.
Eu detestava espelhos.
E na posição que eu estava, conseguia me ver quase de corpo inteiro.
- Como Sarah pode dizer que se sente atraída?
As garotas veem um cara diferente no palco, alguém que está mais perto do que elas idealizam do que o que sou mesmo... mas a essa altura, ela já devia ter se dado conta...

Olhar no espelho, mesmo com a iluminação fraca, me trazia lembranças muito ruins. Chacotas dos meus irmãos, piadas do meu pai...

"Por que só você é magro desse jeito?"
"Cara! Suas pernas são muito compridas!"
"Quando você bateu a cara no chão para o seu nariz ficar amassado assim?"
"Esse narigão não é da minha família não! É da sua mãe!"
Ninguém viveu na minha pele. Ter que ouvir isso, subir num palco, enfrentar uma câmera e rir...
E as manchas? Grandes "mapas" se desenhavam no meu abdômen e subiam pelo meu pescoço. As vezes eu achava que elas estavam ficando cada vez mais claras.
- Joseph... que droga de herança...
Passei as pernas para fora da banheira, sem me importar muito se eu estava molhando o chão e me aproximei do espelho. Já não haviam quase sinais das espinhas que me infernizaram tanto anos antes, e o lúpus parecia sob controle. Sarah disse que eu devia deixar o cabelo crescer... pode ser...
- Michael? Posso entrar?
Era Sarah. Me afastei do espelho.
- Pode.
Quando ela entrou, percebi um certo choque ao me ver de pé no quarto, enrolado na toalha.
- Trouxe mais água quente. Não quer ficar resfriado, certo? - disse ela, já retirando um pouco da água fria e colocando numa terceira bacia.
Aquilo era um sorriso nos lábios dela?
- Do que você está rindo? - perguntei.
- Bom... ainda não estou tão acostumada em ver você assim. Não me preparei para isso.
- Você fala sério? Fala sério quando diz isso? - perguntei.
Eu me aproximei dela, mas ainda a uma distância que ela podia me ver. Eu não estava brincando. Eu queria a verdade.
- Não entendi a pergunta... quer saber se eu estou mentindo quando digo que fico tímida?
- Não. Quero saber se você gosta do que vê.

Sarah, que até então olhava nos meus olhos, sorriu sem jeito e desceu rapidamente os olhos, erguendo-os novamente e fechando-os em seguida, ainda sorrindo.
- Eu não sei explicar, não sei mensurar como eu me sinto atraída, quanto desejo você... não sei como posso te provar isso, e nem por que você não consegue acreditar.
Sarah se aproximou. Ela segurou meu rosto com uma das mãos e colocou a outra mão em meu peito. Meu coração acelerava sempre que ela se aproximava assim.
- Eu preciso tanto acreditar nisso, mas quando me olho, não vejo. Simplesmente não vejo isso que você fala. Que todo mundo fala.
- E por que isso é tão importante pra você? O que você quer provar?

Perguntas para as quais eu não tinha resposta...
Ou tinha?
Sarah se afastou. Voltou a colocar a água na banheira.
- Venha, volte para água quente e tente relaxar tá? Pode até tirar um cochilo se quiser...

Depois que me deitei, Sarah saiu. Eu fiquei ali, recostado na toalha e de repente me senti realmente sonolento.
- Deve ser alguma dessas ervas...
Foi meu último pensamento de verdade.

O restante não veio de mim. Não foram pensamentos normais, muito menos sonhos normais.

Eu estava na 2300 Jackson Street. A casa, estranhamente vazia. Vazia mesmo. Nenhum móvel, nenhum objeto que remetesse aos Jacksons, mas a casa era a mesma, não dava para confundir.
No meio daquele silêncio, eu ouvi um som... parecia...
Um choro?
-Oi? Randy? É você?
Comecei a caminhar na casa que, agora, parecia ainda menor do que nas minhas lembranças.
Quando cheguei ao quarto, havia uma única cama. Era a cama dos meus pais.
O choro vinha dali, mas eu não via ninguém...
- Não Joseph! Não! Eu não faço mais!
Agora a voz era clara. Vinha de baixo da cama.
Eu me abaixei rapidamente e lá estava: o garoto pequeno e magro, escondido como um rato, numa distância que não dava para alcançar.
- Pode sair! Não é o Joseph.
- Pare de mentir! Você vai me mandar pro Joseph!
O garoto, que era eu, estava com os olhos fechados de medo. Talvez ele tenha visto meus sapatos, e concluiu ser Joseph.
- Não estou mentindo. Vamos conversar? Eu tenho muita coisa pra te falar!
- Pode falar! Eu escuto bem daqui.
Será que eu era mesmo petulante assim?
Sim, eu era...
Resolvi me sentar ali no chão. Eu teria que convencê-lo a sair, não ia adiantar tirar na força.
- Onde está todo mundo? - perguntei.
- Eles continuaram. Só eu fiquei pra trás.
- Não é possível... e a mamãe? Ela não nos deixaria para trás.
- Eu fingi que fui. Ela acha que eu fui. Mas estou aqui. - respondeu, já sem chorar, mas ainda magoado.
Decidi fazer a pergunta que eu também me negava a fazer em sã consciência.
- Mas nem a mamãe percebeu que a gente ficou pra trás? Que estávamos fingindo?
O garoto hesitou um minuto, mas ele tinha a resposta que, no fundo, eu também tinha:
- A gente finge bem quando quer... até porque, se ela percebesse, acha que ia deixar a gente continuar cantando?? Claro que não!
- E isso nos mataria né? - perguntei.
- Não sei. A gente ia montar aquela loja de doces?
Eu ri... fazia muito tempo que eu não pensava naquilo.
- Não... não vamos montar.
- Então mataria.
O garoto parecia mais calmo. Acho que valia tentar outra vez.
- Você não quer sair daí? Vamos conversar...
-Tá...
Quando ele saiu, eu quase tive um choque: não me lembrava de mim daquele modo.
Eu era um garotinho realmente muito bonito.
-Hey! Vem cá. Deixa eu tirar essa poeira de você...
Enquanto eu batia as mãos pela camisa branca, e tirava alguns vestígios de poeira do cabelo, percebia que ele me olhava com interesse.
- O que você fez com o meu nariz?
Tive vontade de rir com a pergunta...
- Bom... eu pedi para o médico diminuir. O que achou?
O menino olhava curioso, mas não necessariamente satisfeito. Depois de uma análise minuciosa, sua resposta foi:
- É, ficou legal. Ficou estranho. Mas legal.
- Bom... obrigado.
- Por que fez isso? Doeu?
Eu ia começar com a pergunta fácil. Depois ia tentar passar para a difícil.
- Na hora não dói. Eles colocam a gente pra dormir e não vemos nada. Nos dias depois dói sim e é estranho, mas depois de uns dois meses, já está bom.
- Dois meses!!!?? Você é louco? Para que isso??

Foi quando me lembrei que, quando eu era pequeno, dois meses pareciam mesmo uma eternidade.
- Você não fica incomodado quando tiram sarro do seu nariz? Eu só quis ajudar...
- Você deveria ter dado um soco na cara deles. Isso sim. E falado que o Tito é gordo e o Jackie é feio.
Eu ri... me lembrava perfeitamente da vontade de xingar meus irmãos e da falta de coragem em fazê-lo.
- Você acha que teria resolvido? Brigar com eles? - perguntei, enquanto caminhávamos em direção a rua que, assim como a casa, estava totalmente vazia.
- Acho que teria feito a gente se sentir melhor... pelo menos não ficaríamos chorando escondido.
- Mas quando você se olha no espelho gosta do que vê? - perguntei.
O menino Michael me olhou como se minha pergunta não tivesse sentido algum.
- Como é?
- Você gosta da sua aparência?
O garoto pareceu pensativo. Seguia caminhando, mas sem conseguir chegar a uma resposta, até que eu decidi falar:
- Você é muito bonito. Mesmo. Não me lembrava de mim desse modo, mas você é um garoto de muito estilo!
O meu eu de 9 anos abriu um enorme sorriso, e eu o envolvi em um grande abraço.
E enquanto estávamos abraçados, percebi o som de mais um choro de criança perto de mim.
Quando olhei em volta, vi um segundo menino, sentado debaixo de uma árvore, ao lado de uma pequena pilha de galhos.
- Você conhece? - perguntei.
- Não. Sempre o vejo, mas nunca perguntei nada pra ele.
Eu me aproximei de modo que, ao chegar perto, pude sentar ao seu lado.
- Hey! Oi garoto. Calma... o que aconteceu?
- Acho que foram os pais dele. Parece que se separaram, ou algo assim. Não sei bem.
O meu eu de 9 anos parecia muito indiferente ao sofrimento daquele outro menino. Ele quase não o olhava.
- E então amigo? Quer conversar? - perguntei novamente ao menino.
- Não tenho amigos. Você também não é meu amigo. - respondeu, não rispidamente, mas com uma voz sofrida.
Ele tinha o rosto enfiado entre os braços cruzados. Dava para ver que era um garotinho negro, quase da idade do pequeno Michael.
- Bom, mas podemos ficar amigos! Meu nome... ou o nosso nome, é Michael. Qual é o seu?
O garoto fungou algumas vezes, ainda sem mostrar o rosto. Enquanto isso eu percebia o "mini" Michael bem impaciente.
- Vamos embora. Ele nunca fala. Se quiser ajuda, vai falar.
Aquilo me chocou um pouco: mesmo tendo sido um garoto que gostava de pregar peças, as pessoas sempre me disseram que eu era muito sensível aos sentimentos dos outros... Por que o pequeno Michael ali do meu lado não era?
- Sabe, nem todo mundo consegue falar dos próprios sentimentos com tanta facilidade. A gente precisa ajudar, tentar entender...
- Você vai tentar me entender? - perguntou o garotinho choroso, ainda escondendo o rosto.
- Claro! Prometo que vou. Mas me diga o seu nome.
Então o menino ergueu os olhos. Ele tinha grandes olhos verdes...


- Meu nome é Joseph Jackson.

Michael Jackson - E se... - lado AOnde histórias criam vida. Descubra agora