Childhood

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O motorhome foi um achado.
Um não. Dois!
Conseguimos alugar dois motorhomes de qualidade para passar três dias na aldeia. Depois voltaríamos para o hotel e participaríamos de algumas reuniões do USA for África e em seguida seguiríamos de volta para Los Angeles e para a vida real.
Sim, porque o que vivíamos ali era quase um sonho.
A missão de "exploração " estava sendo levada a sério por mim, e eu me orgulhava em conhecer todos os segredos do corpo de Michael. Fiquei particularmente feliz no dia que ele me permitiu brincar com as manchas de seu abdômen, desenhando mapas e formas, como quem procura desenhos nas nuvens.
   - Nunca imaginei que eu um dia ia rir dessas manchas! - disse, às gargalhadas devido às cócegas que a caneta lhe fazia.
No dia que arrumamos as coisas para ir para a aldeia, o sol estava escaldante, mesmo com o ar condicionado do quarto. Acho que isso despertou a curiosidade de Michael para um ponto crucial:
   - Sarah, de onde vem a água da aldeia? Eu não vi sistemas de distribuição nas casas...
   - Nessa época do ano, que é mais seca, eles  compram água de carros pipa que vem das propriedades que possuem poços artesianos mais profundos, ou que tem nascentes.
    - Não há poços na aldeia? - perguntou.
   - Sim - respondi, fechando a mala com um pouco de dificuldade - mas não são tão profundos. Foi a igreja que custeou na época, mas não havia recursos para uma perfuração mais profunda.
    - E nós podemos fazer isso? Podemos providenciar um poço?
Meus olhos fitaram o dele. Eu o amava cada vez mais, e a bondade que ele tinha era o seu charme mais incrível.
    - Claro que podemos!

Passamos o caminho pensando em melhorias possíveis para a aldeia, como a compra de animais, de insumos e equipamentos para o cultivo da terra.
    - Materiais de escola para as crianças seria bom também.
    - E roupas e sapatos? Acha bacana? - perguntava Michael.
    - Não... eles não gostam de esmola. Gostam de receber coisas que os ajude a trabalhar e se sustentar... mas podemos dar os tecidos! Elas mesmo fazem as roupas.
Michael observava minhas anotações firmes no papel, ainda que o motorhome balançasse tanto quanto a van.
   - Sarah, e os homens? Vi os mais velhos e os meninos, mas não vi os homens e os jovens...
   - A maioria deles fica na cidade durante a semana, principalmente em Luanda. Alguns trabalham nas construções, outros em plantações maiores nas redondezas... mas geralmente passam a semana longe e voltam quando recebem. Acho que isso faz com que as mulheres sejam tão duronas lá.
Michael ficou pensativo por um minuto e logo ligou as coisas:
    - É por isso que muitas preferem não ter marido, não é? Como a Latitah? Porque tem a epidemia de aids que é algo sério demais e...
   - E são os homens que trazem a doença para a aldeia. Sim. É isso. As mulheres mais velhas da aldeia já fizeram essa ligação, mas os homens resistem em entender. Não acham que seja isso, e ficam colocando a "culpa" em seres místicos e entidades.
   - Eles não são cristãos? Os homens?
    - É difícil... eles ficam pouco, então o evangelismo não os alcança com a mesma facilidade, e também há resistência em deixar o que é errado, né?

Quando os motorhomes chegaram na aldeia, fomos cercados mais uma vez, e a festa foi completa, com Michael colocando música no carro e dançando com as crianças enquanto eu ajustava nossa chegada.
Pararíamos os motorhomes perto da casa dos missionários, para poder usar o banheiro e tomar banho mais confortavelmente, mas não dava pra deixar de pensar que, em quase todo resto da aldeia, as pessoas ainda tomavam banho em tinas de água.
E era exatamente isso que Latitah queria que eu fizesse, ainda naquele dia.
    - Calma! Não posso fazer isso amanhã? - argumentei, na verdade com a esperança de fugir do tal "banho" de ervas.
   - Está com medo do que garota? Você sabe que não tem nada de maligno ou espiritual nisso. As ervas te relaxam e o resto Deus faz. É tipo o banho daquele moço... o...
    - Naamã. - completei.
    - Isso. Esse mesmo.
Fui ao motorhome pegar uma muda de roupas. Eu ainda estava apreensiva... será que eu ainda precisava daquilo? Será que deveria contar a mama Mandisa e a Latitah sobre todo aquele processo que eu e Michael estávamos enfrentando? Devia falar sobre as questões do staff?
Minha cabeça fervia em pensamentos, quando Michael entrou no motorhome, às gargalhadas.
    - Vocês roubaram! - dizia para as crianças, em português, para meu espanto.
   - Nossa!!! Vai sair daqui bilíngue!!
Michael me abraçou e me deu um enorme beijo no rosto.
    - Obrigado por me apresentar esse lugar! Onde você vai?
Ele me viu separando as roupas e a toalha.
    - Ritual da Latitah... - disse, sem muita empolgação.
    - Você não quer?
   - Não é que não quero... é que... não sei se devo contar tudo, porque pra esse processo, eu preciso falar, preciso colocar as coisas pra fora...
Michael sentou-se na cama, puxando-me para seu colo de um modo muito terno e cuidadoso.
   - Confia nelas? Acha que manterão segredo?
    - Sim. Isso sim. Não tenho dúvida.
     - Então vá em frente. Não foi você que me disse que temos que iluminar os cantos escuros e deixar a luz entrar?
Abaixei a cabeça em sinal de consentimento. Fazer as coisas com o apoio de Michael realmente tornava tudo mais fácil. Ele me trazia calma, tranquilidade... não sei se era o tom da voz dele, se era os olhos serenos, mas quando ele dizia "faça" parecia que nada poderia dar errado.
Eu podia ouvir Deus falando por meio dele.
    - Eu queria tanto causar em você o mesmo efeito que causa em mim. - revelei, suspirando tristonha.
   - Que efeito?
    - Eu te ouço e simplesmente sei o que devo fazer. Deus fala comigo através de você e eu posso sentir isso. Queria que você pudesse ouvi-lo também.
Michael me puxou para mais perto e beijou minha testa. Ficamos assim, de terras coladas por um tempinho, até que ele disse:
    - Ele fala Sarah. Eu o ouço na sua voz também... só não sou tão corajoso quanto você. Ou talvez a minha escuridão seja mais densa que a sua, por mais incrível que pareça.
    - Vamos acender essas luzes aos poucos? Nem que seja uma vela hoje, um lampião amanhã... mas vamos começar, por favor? - pedi.
Pedi não. Eu implorei. Eu já estava chorando outra vez.
De alguma forma eu sabia que a nossa união dependia disso: não ficaríamos juntos se algum de nós mantivesse qualquer cômodo apagado ou inacessível um para o outro.
    - Hoje você. E eu vou pensar. Eu prometo.

Michael Jackson - E se... - lado AOnde histórias criam vida. Descubra agora