The way you make me feel

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"Senhor, guarda o meu coração meu pai. Não me deixa esperar nada além do que você planejou para a minha vida. Que eu possa usada para cumprir a tua vontade e que eu esteja atenta a sua voz, querido Deus. Amém."

E era mais ou menos com palavras como essas que eu iniciava cada dia: pedindo a Deus que ele me protegesse contra mim mesma.
A semana passou do modo contrário ao que eu esperava: entre quinta e domingo era como se cada dia fosse tão curto que eu nem me dava conta de como tinha chegado ao trabalho da manhã e como tinha saído para o trabalho da tarde. Cada hora parecia ter metade dos minutos normais e meu coração explodia cada vez que ouvia o telefone da secretaria da escola tocar, na esperança de ser a secretária do Jhon Landis confirmando o ensaio da próxima quarta.
O final de semana então foi mais tedioso do que costumava ser: sábado pela manhã fiz minha corrida pela avenida, a tarde eu estudei vários assuntos aleatórios, mas nenhum prendia minha atenção e a noite fui ao teatro cumprir minha participação naquele musical infantil que, de tão interessante, eu nem me lembro o nome.
Domingo de manhã o culto foi minha salvação: sim, aquela era minha paixão maior. Poderia até parecer ilógico uma pessoa tão crente nas exatas como eu, dedicar parte de sua vida a um Deus sem nome e sem aparência, mas Ele era (e é) a única certeza que eu carregava durante toda a vida: tinha certeza que, o fato dos meus progenitores terem me deixado naquele dia e naquele local, era uma prova de que Ele estava cuidando de mim. Projetar meu cérebro para ser diferente dos demais também era um presente Dele. Livrar-me da morte e me dar mais uma chance de vida, era outra bênção que eu jamais poderia agradecer.
Mas o domingo passou veloz, e já era segunda de manhã. O período das 7h às 12h que deveria durar 5 horas levou cerca de 20 minutos para acabar. Essa era a percepção do meu cérebro diante da minha ansiedade e medo de ser trocada do elenco do videoclipe. Quando cheguei à escola, já perto das 13h, mastigando um lanche natural e caminhando para a sala dos professores quando ouvi a voz de Tina, bem antipática, ao telefone:
_ Pois não?! Senhorita Brown? Ela trabalha aqui sim. O que você quer? Recado? Olha bem, eu sou secretária da escola...
Saí correndo e praticamente tomei o telefone da mão da senhora mau-humor.
_ Alô? Sarah Brown falando!
_Ah, oi Sarah! Tudo bem? Aqui é Jenny, secretária do senhor Landis.
Alívio imediato, mas em um segundo o coração já disparou: será que ela vai me dispensar?
_Olá Jenny! Como vai? Eh... Desculpe pela Tina... Acabei de chegar aqui na escola.
_ Fique tranquila querida! Que bom que você está aí! Só quero confirmar o ensaio desta quarta-feira e o senhor Jackson pediu para verificar com você uma lista de itens para o lanche.
Como posso expressar a alegria total? Eu queria correr e gritar!
Mas a voz foi de alguém que até tinha se esquecido que teria um compromisso com Michael Jackson durante a semana...
_Humm... Como ele é teimoso... Disse que não precisava.
_Ele me alertou que você não ia querer falar... Mas falou para eu insistir muito se fosse preciso, então é melhor você falar querida. - a voz de Jenny era como aquela professora que te avisa para prestar atenção na aula, mas com um tom muito carinhoso.
_ Certo... Bom, vamos lá...

Depois de passar uma lista de 4 ou 5 itens, voltei para a sala. Acho que meus alunos nunca me viram tão animada em uma aula! Até consegui vibrar com a encenação de Daniel na Cova dos Leões, mesmo que fosse a centésima vez que eu passava aquelas falas. No entanto, percebi que, diferente dos dias até então, agora o tempo se arrastava...
Seria extremamente maçante descrever minha espera entre segunda e quarta a noite, mas apenas para ilustrar o tamanho do meu tédio, eu já estava desenvolvendo novas manias nada comuns: eu lia rótulos. De tudo que estivesse ao meu alcance: potes de maionese, shampoo, frasco de perfume, garrafas de água. Achava que não dava pra ser mais esquisita, mas eu conseguia sempre me superar. Na verdade até era um bom hábito: estava relembrando as aulas de química do colegial.
Finalmente, quarta-feira à noite. Naquele dia me despedi de meus alunos: já tinha indicado uma conhecida da faculdade para me substituir e deixado a senhora Speakins, diretora do colégio do orfanato, ciente que precisaria me ausentar no próximo período e, quando contei o motivo ela quis me fazer prometer que conseguiria uma visita de Michael à escola... Tive que rir e dizer que tentaria falar a respeito: realmente seria incrível e aquelas crianças mereciam, mas ainda que Michael tivesse a fama de bom moço e solidário, não dá para pedir uma coisa assim de uma hora para outra... Decidi que colocaria isso nas minhas orações a partir de então.
Saí da escola e voei para casa a fim de tomar um banho. "Você é uma garota interessante. E é muito bonita também." Eu ficava pensando nas palavras dele enquanto me olhava no espelho. Sim, eu era bonita, eu sabia: a simetria do meu rosto garantia isso e a pele boa também ajudava, mas nunca consegui me deter demais nisso... Desde a adolescência também sempre recebi muitos elogios pelo meu corpo, mas sempre que me olhava eu lembrava de quanto isso era também uma armadilha... Larguei estes pensamentos e fui me arrumar. Cabelo preso hoje num coque solto. Brincos estilosos para compensar a quase nenhuma maquiagem (não tinha tempo e nem muita paciência). Escolhi uma camiseta aberta nas costas por conta do calor, já que o dia tinha sido quente e a noite seguia para o mesmo caminho. Por baixo de tudo, collant inteiriço para ser mais simples, polainas e tênis. Salto alto vermelho na bolsa. Perfume? Sim. Por que não?
Ao chegar no prédio, me lembrei da orientação do "chefe" e guardei o carro na garagem subterrânea. O carro dele já estava lá. Aquilo era um arranhão na roda?
Quando cheguei ao andar, havia muito mais gente: Jenny estava lá, organizando os papéis na mesa da recepção da ex-academia, colocando-os em uma pasta e eu podia ouvir algumas vozes no estúdio de dança. Quando me viu, abriu um sorriso acolhedor, mas com um olhar que sugeria algo que eu não havia captado.
_ Olá senhorita Brown! Espero que esteja muito bem disposta esta noite!
_ Olá Jenny! Bom ver você! Eh... sim, estou bem. Aliás, preciso te passar o telefone do meu emprego da manhã: larguei temporariamente as aulas da escola.
_ Eu no seu lugar já teria largado os dois empregos: você ainda não tem muita noção no que está envolvida, não é?
Onde ela queria chegar? Eu realmente não estava captando...
_ Como assim Jenny? Desculpe, eu sou lenta para compreender as entrelinhas. Pode me explicar?
Jenny revirou os olhos para mim, como quem diz "menina lerda", mas baixou o tom de voz e aproximou o rosto, falando baixo:
_ Sarah, você será coadjuvante em um curta metragem de 500 mil dólares! Você vai contracenar com Michael Jackson. Se isso não te impulsionar ao estrelato, não sei mais o que fará!
É, eu realmente não tinha pensado em absolutamente nada daquilo.
_ Bom... Mas é sempre bom termos os pés no chão não é? Deixa acontecer, depois eu vejo o que vou ser a partir de então.
Jenny me olhou com ternura, reclinando a cabeça para o lado:
_ Ele falou de você a tarde toda! Rasgou-se em elogios! Ele está encantado menina!
_ Oi?
_ Sarah, eu conheço pouco o senhor Jackson, mas nas últimas semanas falei muito com ele ao telefone e o vejo com Landis o tempo todo. Nunca conheci um rapaz tão doce, mas também nunca vi alguém tão triste... Hoje ele parecia outra pessoa, dava para ver nos olhos dele. Não sei o que vocês fizeram sozinhos aqui semana passada, mas você acertou a mão!
Fiquei na dúvida sobre a última frase dela... Ela estava insinuando algo, ou falava do trabalho mesmo? Preferi sair pela tangente: ela estava tentando ser legal. Ninguém tem a obrigação de entender a minha personalidade fria e distante. Achei melhor me despedir com um sorriso e entrar para o estúdio.
Não havia tanta gente como pensei, na verdade estavam todos muito animados e falavam todos juntos, parecendo ter uma multidão, mas era apenas Landis, Niko e Michael. Assim que entrei, deixei minha bolsa na cadeira ao lado da porta antes de olhar para frente, mas já me senti observada. Peguei minha garrafa de água e, aí sim, eu o vi.
Calça jeans escura, mocassins (os mesmos, eu acho), meias brancas. Suéter rosa do Mickey (sério isso?) e camisa branca por baixo. Cabelos molhados. O perfume já invadia meu sistema respiratório.
_ Boa noite Sarah! - cumprimentou-me assim que cheguei à roda.
_ Boa noite Michael! Senhor Landis, Niko. Tudo bem?
_ Não me chame de senhor Landis! Sou o quê? 8 anos mais velho que você? Pode me chamar de Jhon. Vamos começar então?
_ Olá Sarah! - saudou-me Niko e voltou-se para Michael - chefe, então você vai embora com o Jhon? Certeza?
_ Sim Niko. Pode ir para casa e fique com o carro. Amanhã te vejo às 9h, ok? Me liga quando estiver saindo da sua casa.
_ Ok Michel. Boa noite pessoal. Jhon, cuide do meu chefe hein!
_ Estou de babá esta noite Niko, pode descansar.
Michael revirou os olhos para os dois durante este último diálogo e me fez rir. Ele riu também, mas acho que ele se incomodava com isso: por que as pessoas tratavam ele como alguém que precisava ser "cuidado"?

Os trabalhos naquela noite foram bem mais técnicos do que na semana passada. Felizmente, Jhon aprovou o tom que estávamos dando aos personagens e orientou Michael a deixar a atuação de fato para o momento da metamorfose, mas que ele fosse o mais natural possível no início do vídeo. Michael já estava com as falas bem melhor decoradas, e agora só precisava colocar a atuação nelas: ainda que ele precisasse soar como ele mesmo, vamos combinar: Michael Jackson não sai de cadilac pela madrugada passeando com mocinhas por aí e, ainda por cima, ficando sem gasolina.
Começamos o ensaio pontualmente às 20h e já eram 21h30 quando Michael decretou:
_Jhon, vamos dar uma pausa. Precisamos comer e nos hidratar, certo Sarah?
_ Perfeitamente! - respondi com o mesmo tom formal/debochado que ele tinha usado. Landis começou a rir:
_ Sarah, você já merece um prêmio: conseguiu fazer este cara pedir uma pausa no trabalho para comer! Geralmente ele para as refeições para trabalhar!
-Eu vou aprender Jhon, você vai ver. - retrucou Michael.
_ Certo - continuou Jhon - Voltamos daqui 30 minutos então. Eu vou dar um pulo em casa e ver se a fita com a canção adaptada para o vídeo já está pronta. Comportem-se crianças!
Michael e eu ficamos parados, vendo o diretor se afastando. Parecíamos crianças que esperam o professor sair da classe para começar a conversar.
_ E então? Chegou tranquilo semana passada? - achei que seria simpático começar a conversa.
_ Tirando que arranhei a roda dianteira na guia quando cheguei em casa, tudo tranquilo... Mas vamos lá comer!
Michael se levantou e eu ia segui-lo, mas ele parou para que eu fosse na frente. Quando atravessamos a porta para a recepção, eu realmente me surpreendi: A mesa que Jenny estava arrumando estava linda, cheia de frutas bem cortadas, uma linda jarra de suco de laranja e uma bandeja com pequenos lanches naturais.
_ Nossa... Mas você não falou...
_ Quando vi a lista que você passou para Jenny achei que você economizou nos pedidos. Aí falei com a cozinheira lá de casa e pedi para ela preparar mais umas coisas...
Nos servimos e sentamos nas cadeiras diante da mesa. Ia sobrar muita coisa, era fato. Michael mais tomava suco de laranja do que comia. Peguei a melancia e piquei em pedaços menores. Coloquei no prato junto com um garfo e empurrei para ele:
_Pare de me enrolar. Pode comer.
Ele abaixou a cabeça e olhou-me com um sorriso no rosto. Como ele podia fazer isso? Me derreter completamente apenas com um olhar? Decidi pegar a embalagem do pote de patê e comecei a ler.
_ Atum, ervas finas, sódio...
_ É engraçado você ser tímida Sarah... Você é atriz.
_ É engraçado você me chamar de tímida Michael: você também é, mesmo sendo uma timidez seletiva.
_Timidez seletiva? Essa eu nunca ouvi... Explique-se. - Ele falava com enorme bom humor, mastigando a melancia, e separando os caroços na mão.
_ Preciso explicar? Você não é nada tímido no palco! Aliás, você me faz corar só de te assistir. Mas quando não está no palco, parece...
Eu parei. Não sabia se ele ia ficar feliz com minha sinceridade, mas para meu desespero, ele ficou bem interessado.
_ Pareço?...
_ Parece um garotinho deslocado. Desculpe.
_ Você se desculpa muito Sarah... Não precisa.
_ É que eu tenho um sério problema em filtrar o que eu falo e a intenção nunca é magoar, mas tenho dificuldade com as "mentiras sociais"...
_ Sabe, eu até gosto disso: as pessoas geralmente contam muitas "mentiras sociais" pra mim, e eu nunca sei quando estão sendo sinceras ou não.
_ Bom, então pode ficar tranquilo comigo neste quesito... Inclusive, me diga se eu for inconveniente, pois me ajuda a calibrar minhas palavras.
Michael sorriu e acenou afirmativamente com a cabeça. Depois, pegou mais um pedaço de melancia e ficou olhando para o nada enquanto mastigava. Fiquei em silêncio.
_Eu sou um garotinho deslocado na maioria das vezes. Fora do palco eu me sinto assim.
_ Então o Michael de verdade é aquele de cima do palco?
_ Não sei... As vezes eu penso nisso... Não posso dizer que estou interpretando um personagem quando performo, mas aquele Michael simplesmente fica lá, ele nunca desce do palco quando o show acaba.
Fiquei em silêncio. Não sabia o que responder. Comecei a encher meu copo de suco.
_ Qual deles você prefere? - ele quis saber.
_ Como?
_ Qual Michael você prefere? O que fica no palco ou o que desce? - parecia interessado em seguir a conversa neste rumo.
Caramba, que pergunta difícil! Não dava para elaborar e eu senti que tinha que ser sincera. Se eu pensasse muito, não conseguiria responder.
_ Passei a vida toda admirando o Michael do palco. Imitando os passos, analisando os movimentos, a impostação da voz, afinação... Assistia aos shows e performances da TV em duas etapas: primeiro como fã e depois como analista de arte. Seus olhos sorriem quando você está lá. Seu corpo todo sorri. Mas, em algum momento, este Michael deslocado aparece, só de relance, bem rápido. Aqui, é o contrário: é o Michael ousado que fica escondido, e aparece de relance por poucos segundos.
_ Sua análise foi incrível, mas você não respondeu minha pergunta. - ele me olhava tão firme e com uma profundidade que parecia me hipnotizar. Eu não conseguia desviar. Eu mal conseguia pensar.
_ Gosto dos dois, mas queria ver o Michael do palco aqui embaixo. Ele parece sempre mais feliz e você fica lindo quando sorri de verdade.
Michael segurou minha mão que estava apoiada na mesa. O choque. Eu senti, Ele também. A manga do suéter rosa do Mickey (esse suéter...) estava dobrada até o cotovelo e pude ver ele se arrepiar, assim como eu. Meu coração parou de bater. Quando olhei nos olhos dele de novo, ali estava: o Michael do palco havia descido e estava ali, diante de mim, segurando a minha mão entre seus dedos, pressionando-a com gentileza, mas com força ao sentir o baque do toque. Ele baixou os olhos até meus lábios e eu gelei ainda mais, mas já não pensava em nada. Voltou a olhar nos meus olhos e levou minha mão até os lábios, beijando-me as costas da mão. Um beijo lento, de olhos fechados. Em seguida, ainda segurando minha mão, pousou-a novamente na mesa e disse, mantendo o olhar no meu:
_ Obrigado. Mesmo. Nunca consigo conversar com ninguém assim, sabendo que vou ouvir a verdade. Acho que preciso te manter por perto, se você quiser.
_ Melhor mandar este Michael para o palco de novo, ele está fazendo a maior bagunça no meu cérebro...
Michael gargalhou. Uma risada que eu queria ter gravada em áudio e vídeo.
_ Você é incrível Sarah!
Ouvimos o apito do elevador chegando ao andar. Era Jhon. Eu precisava responder a penúltima frase dele. Me levantei e comecei a ajeitar a mesa. Estiquei o braço para pegar o guardanapo e meu rosto ficou muito próximo ao dele, que ainda estava sentado. Era o momento:
_ A propósito, eu quero ficar por perto.
A resposta veio em um sussurro:
_ Graças a Deus.

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