Parte I - A espada (Capítulo 1)

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- O que as sombras te dizem, Aryn? – questionou o anão que ocupava a cela ao lado da jovem mulher de cabelos negros.
- O rei morreu e a Sanrya será coroada na próxima semana. – A voz que tivera recebido ar fresco já há muito tempo, ecoava com ronquidão. – Está na hora, caros amigos.
Os prisioneiros começaram a bater nas grades e a cantar uma melodia da língua antiga.
Aryn deitou-se na sua cama de palha velha e observou o teto escuro e húmido da sua cela. Por vinte anos ela foi mantida naquela cela, chegou ao ponto de esquecer o que era o sol ou a chuva. Na escuridão Aryn aprendeu como controlar o seu poder das sombras, e por duas décadas explorou o castelo sem sair da cela nas profundezas.
O poder da escuridão era a sua fonte de conhecimento do que acontecia acima das profundezas.
Grande erro do Rei do Gelo por a ter prendido no lugar onde ela sentia-se mais confortável e segura.
- O que vais fazer quando saíres daqui? – a voz calma e grossa do anjo se fez presente.
- Eu não sei, provavelmente comer uma enorme refeição. – respondeu Aryn. – Suponho que a primeira coisa que tu vás fazer é voar.
- Eu preciso de voltar a aprender antes de me atirar de um precipício.
O anjo, Rohan, tinha sido preso quando Aryn tinha quinze anos e desde aí o direito de voar fora-lhe renegado.
Aryn ouviu a história dele graças às sombras, mas nunca ouviu a história pela boca dele.
Assim como Aryn ouviu a história dos quatro prisioneiros e conheceu o castelo pelas sombras, ela também contou os dias conforme o seu poder aumentava. De dia ela era forte, mas de noite ela era tão mais forte que não conseguia dormir com o poder que lhe corria pelas veias.

***

Por uma semana Aryn ouviu o choro da irmã, ouviu as pessoas andarem de um lado para o outro, mas, principalmente, ouviu o caixão do falecido rei ser enterrado ao lado da mãe da Aryn, Rainha Mor.
Já era de noite e a realeza dançava na sala do trono como se o caos não nascesse naquele castelo.
- Fauser, por favor canta algo para nós. – Pediu Aryn ao duende de voz esganiçada.
Todos sabiam o que ia acontecer, taparam os ouvidos e se prepararam para o que aí vinha.
Fauser abriu a boca e imediatamente o castelo começou a tremer. Não demorou muito para as sombras avisarem Aryn da descida dos guardas.
- Meus senhores, está na hora da caça. – Aryn sorria cada vez mais a medida que os guardas desciam até as profundezas.
Já há muito tempo que ninguém descia até lá abaixo, já há muito tempo que os prisioneiros não comiam e não há nada pior que um inimigo esfomeado.
- Eu posso sentir o cheiro do medo deles. – Gritou Naxos enquanto ria loucamente.
Cinco prisioneiros. Cinco prisioneiros mantidos na escuridão por muito tempo. Ninguém pode parar os Renegados, eles vão provocar o caos.
Aryn podia ouvir os passos apressados dos guardas, pelo som pareciam cerca de trinta soldados.
Uma parte da jovem mulher animou-se com a ideia de ter sangue nas mãos, com a ideia de ser causadora de mortes. Demorou mais do que esperado até os guardas chegarem às profundezas do castelo, com tochas de fogo para, finalmente, dar luz ao lugar que ninguém sabia como realmente era. O guarda mais alto e mais forte aproximou-se das celas e observou o seu interior, o medo corria pela espinha da coluna do soldado.
- Parece estar tudo direito aqui em baixo. – anunciou o tal soldado dando uma última vista de olhos na cela do Naxos.
Quando o homem alto virou as costas ao Naxos, os seus olhos arregalaram-se e um fio de sangue começou a escorrer da sua boca. Os guardas tiraram as espadas das suas bainhas e apontaram-nas na direção dos cinco prisioneiros.
- Vinte e nove contra cinco. Mais fácil seria impossível. – Murmurou o anão.
Naxos deixou o corpo do soldado cair no chão depois de ter tirado as chaves e a Aryn viu a tempo as garras de urso encolherem até ficarem unhas humanas.
A mulher de cabelos negros concentrou-se, sentindo o formigueiro correr pelo seu corpo. Focou na mão do Naxos que acolhia o molho de chaves que, rapidamente, pararam nas mãos da Aryn, rodeadas de sombras negras.
Silenciosamente, Aryn abriu a porta da sua cela e atirou a chaves para o anjo ao seu lado para fazer a mesma coisa. Pouco a pouco as cinco celas ocupadas acabaram por se abrir e os soldados se juntaram enquanto tremiam que nem uma vara verde.
Fauser voltou a cantar e as montanhas tremeram, os soldados caíram no chão a segurar a cabeça com a dor nos ouvidos.
- Temos que ser rápidos, acho que o Fauser pode ter causado uma avalanche. – Avisou o Rohan ao sentir o chão tremer.

***
Assim que estavam longe o suficientemente do castelo, e a avalanche tinha acabado, o grupo sentou-se entre as árvores e aproveitou o calor da fogueira que, entretanto, fizeram.
-Então isto é o vento...- Fauser mexia o corpo a medida que o vento da noite uivava como uma dança. O homem pequeno, com o passar do tempo, acabara por se esquecer da sensação do vento.
- Como estão as asas? – perguntou Aryn para o anjo.
- É estranho voltar a sentir o toque do vento nelas, estão sensíveis. – respondeu.
Aryn aproveitou a luz da fogueira e observou os companheiros de fuga.
O anão, antigamente conhecido como Hoddy, era mais pequeno que a Aryn, mas mais alto que o duende. Isto para não falar da enorme barba que ele agora entrançava.
Naxos, o metamorfo, era velho e assustador com uma enorme cicatriz na cara. Ele desfazia a barba com um punhal que encontrou durante a fuga.
Fauser era pequeno, fofo e traiçoeiro, sempre com um sorriso no rosto bochechudo, e os seus pequenos cornos pareciam brilhar com a luz do fogo.
E por fim Rohan, o anjo com as suas belas asas brancas que continham resíduos de sangue. O cabelo azul, como um lago congelante, batia nas costas e as tatuagens que abraçavam o seu pescoço. Aryn nunca as tinha visto até aquele momento.
Quatro lindos homens que não sabiam o que era limpeza pessoal há anos.
- Sempre te imaginei alta. – Comentou Naxos apontando para Aryn com o punhal.
- Parece que te enganaste. Sempre te imaginei jovem.
- Posso ser velho, mas ainda faço melhor trabalho que muitos jovens. Mal vejo a hora de pegar um belo par de seios e me enterrar profundamente. – Naxos fazia gesto perversos para exemplificar.
- Depois de tantos anos, aquilo que tu chamas de pau, não levanta. – O anão ria como se tivesse contando a maior piada do mundo.
Eles eram homens perversos que passaram maior parte da vida naquele castelo, para eles a linguagem inapropriada era normal e nem percebiam que a rapriga olhava para eles com a sobrancelha erguida e os questionava mentalmente. 
Outra coisa que não percebiam era que entre a neve e a escuridão da floresta uma criatura observava o grupo a espera do sinal.

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