A Teoria Da Maldita

2.7K 526 300
                                    

Um par de olhos fixos com as pálpebras próximas o bastante para focar no outro que se desviou para o chão, direita, esquerda e, só depois de piscar durante um suspiro, fechou o elo.

A meia dúzia de cabeças curiosas com tamanha tensão pareciam tão distantes quanto eles, tão juntos, se enxergavam. Papo de uma década os separando, pra ser mais precisa pois se o tempo na padaria parou para os dois regressou ao fatídico dia do último encontro. Ela usava a mesma roupa, inclusive, e se não fosse o encanto dele de certo tiraria como um deboche desprezível para com seus sentimentos. Mas o que esperar da desgraçada que o abandonou sem mais nem menos, em pleno sono, sabe-se lá pra onde?

A conferiu da cabeça aos pés e apesar da imagem atual pouco combinar com aquela roupa típica, ela mantinha a mesma aura pura e instigante de sempre, como era possível!? Vacilou na postura dois segundos, embasbacado e quieto demais para o gosto de Krystiellen, outra perdida. Se ela mudou pouco, ele menos ainda. Roupa de marca ele sempre usou, independente de como conseguia. Adicionou tatuagens charmosas, uma ou outra cicatriz recordação de seus vários caôs. Trocou a correntinha simplória com pingente de cruz que um dia ela se orgulhou de pendurar no pescoço por um grosso cordão de ouro, algo não tão significativo quanto o anel gravado com a sigla oficial da Tropa do Corre, TdC com as letras pontudas, afiadas, e um ponto unindo o D ao C, formando um X, símbolo máximo da facção. Reconheceu essa aliança como a mesma usada pelo chefe do lugar quando ela se foi.

Seus olhos arregalaram ao buscar nas recordações os costumes mais célebres da “firma”, como o repasse desse “crachá” como troféu a quem ganhasse o mandato do morro. Quando ouviu a vó elencá-lo como um chefe de bando criminoso, ela não pensava em algo tão grandioso quanto o domínio da favela inteira. Em explicações mais simples, ela sabia sim que ele era um dos grandes, só não esperava que ele fosse o maior dali. Marcilinho o famoso dono do morro, quem diria... Se puxasse essa conversa, certeza de ouvir vanglorias de como ele sempre avisou que iria longe e promessas dele em lhe contar cada aventura até chegar ali – isso se ele não a expulsasse pela simples ousadia de se calar.

— Esqueceu a educação na gringa, foi? – cobrou ansioso por uma reação, um deboche, uma explicação, uma recusa. Qualquer palavra servia quando se esperou tanto pra ouvir.

Encurralada, Krystiellen enfiou as mãos nos bolsos traseiros e acenou duas vezes sua cabeça ciente de estar no erro. Ir pra cama, receber presente e até essas juras de amor besta tirada de filme adolescente, sair de fininho com o cara dormindo, catar suas coisas e deixar o aviso pra ele nunca mais lhe procurar foi uma baita sacanagem, porém Marola nunca combinou com o papel de vítima.

Se fosse o contrário, em vez de remoer o assunto ele contaria até hoje essa vantagem na roda dos amigos na maior vibe de "Saca só galera: lembra do dia que eu destruí o coração de Ellinha e ela não me esqueceu até hoje?". Cadê o inabalável Marcílio, seus papos de pegar sem se apegar pra não machucar, de não dar ou esperar satisfações além da cama? Os papo de bandido que não demonstra o que sente em público? Ele sempre tão comprometido com a vida errada a ponto de negar tornar sério o compromisso alegando não a querer envolver nessa sina, dando pala no meio da padaria pra todo mundo ver seus rancores, mágoas e um desejo forte o suficiente pra nem mesmo essa raiva profunda mascarava.

Um passo dele à frente provocou rebelião. Krystiellen puxou o ar cheiroso à Malbec misturado com cigarro e altas doses de malícia, provas de não viver um desses pesadelos realistas onde as consequências de seus atos voltavam pra lhe atormentar na forma de um traficante com pistola na cintura, fuzil nas costas e o peito cheio de feridas em aberto.

Onde caralho se enfiou? Só ouviu os conselhos de mãe Dita sobre o dia em que se arrependeria de render pra um cara desses no dia que o arrependimento bateu na porta. Por um segundo quis sumir mas nunca foi de fugir da arraia. Okay, vacilou! Tanto tempo se frustrando com esse papo desapegado dele, sequer pensou na chance dele se importar o suficiente e... Péssima ideia minimizar não só os sentimentos dele como a história não tão esquecida quanto achou. Aí, na moral, essas coisas não prescreviam igual crime, não? Devia mesmo satisfação de golpe velho? Nem compromisso firmaram e por falta de intenção dele, diga-se de passagem. Em qual momento o senhor “é só corpo, sem sentimento” tornou-se sensível o bastante pra alimentar mágoa de uma década? Quis muito debochar, lembrar de seus vários avisos: ele só a valorizaria após a perda, só compreenderia seu amor se ela o negasse e etc. Pra recuperar o fôlego, sorriu envaidecida: só ela pra ser braba pra caralho assim, 120 meses longe e nem assim foi esquecida, uma glória da Krystiellen do passado, entretanto. Dela, só mantinha a marra.

— Quê que é, hein, Marola?

— Nada, só fiz uma pergunta. Queria saber se tu tinha pelo menos essa coragem. - implicou dando um bom gole de cerveja pra lubrificar a garganta e diminuir diminuir o nó.

Nesses dez anos, vez ou outra se pegou pensando nela, no fim inesperado e nas vezes em que conferiu as fotos de Krystal, tão distante em físico quanto em sentimental, pique musa inatingível, sonho de consumo. Conformou-se com a chance perdida, com as memórias de alguém agora inalcançável mas desde que deu flagrante em Ellinha não pensava em outra coisa além de ser uma benção do destino. Um potencial enorme de, sei lá, fazer diferente agora. Nem que fosse só uma foda pra matar a saudade, perceber não terem mais nada a ver além desse clima nostálgico e se darem um final decente, no mínimo. Uma conversa normal, que fosse, qualquer coisa pra mente girar em algo além desse retorno bombástico. Uma favela gigante pra cuidar, enterro pra dar conta, os cana na bota e ele com a cabeça na única garota que deu perdido nele, vê se pode!?

Mas é que essa era... Sei lá, diferente. Mexia com ele. Se Krystiellen o bagunçava inteiro desde a adolescência dela mais largada, com roupas compradas em feira, brechó pobre e consertadas pela a avó costureira, o cabelo pesado de tanto creme e os trejeitos vulgares e briguentos, quanto mais agora no auge da finesse, com postura de madame, os cachos cheios e volumosos combinando com as bochechas redondas e a pele limpa das muitas espinhas. Uma coisa não mudou: ele seguia apaixonado e suspirando independente do visual, da distância, das mágoas e desse silêncio. Foi obrigado a dar razão à Gracinha e à voz da consciência: a maldita ainda desconcertava ele todinho.

Do jeito de olhar pro chão por falta de argumento, de como as coxas dela roçavam ansiosas, na impaciente conferência do entorno pra ter certeza que dona Dita não flagrava os dois de conversinha e em busca de rota de fuga. Qual é, vai arregar, maldita? Papo reto? Insistiu num silêncio desconfortável até ela ceder – mas não da forma que ele gostaria.

— Coragem de quê?

— De terminar o bagulho direito.

— Terminar o quê? Que bagulho?

— Tu sabe muito bem do que eu tô falando, maldita. – chamá-la assim foi golpe baixo.

Arfou saudosa, revisitando as noites longas onde ele a chamava assim ao pé do ouvido e ele adorou não ser o único carregando o fardo das lembranças. O canto direito esticou canalha e ela, tinhosa, percebeu sua estratégia conquistadora e ela detestava perder as guerrinhas costumeiras entre os dois. Quem era Marola pra travá-la assim? Pra cobrar sentimento, respeito? Pra testar se ainda a dominava fácil só por ser gostoso assim de perto e ter apurado o charme com a idade? Ah, não, Ellinha!? Refugiou-se no ego pra fugir dessa encruzilhada.

— Pente e rala pra não ter cobrança, não era isso o que tu falava pra mim? - dispensou piscando marota.

Ficaria mais fácil superar se Krystiellen não ficasse tão foda bancando a braba. Cheia de marra, a gata, assim ele perdia a linha. Pra manter o costume, fingiu concordar na maior ironia pra devolver a vergonha.

— Já sim. E tu já ouviu falar de um tal de adeus? - implicou dando um bom gole de cerveja pra lubrificar a garganta e diminuir diminuir o nó. - Dizem que não faz mal não.

Todo esse show era por falta de adeus? Krystiellen riu nervosa, se fez plena. Deboches à parte, se ele levasse a mal um fora em público no mínimo ela acabaria sem cabelo por fazer o chefão passar vergonha na frente do bando, mas milênios passariam e Marcílio continuaria o mesmo malandro mulherengo confundido por um requebrado vindo em sua direção e ela apostou as fichas.

Chegou pertinho de colar bochecha com bochecha. Riu seus "aí, aí" pra ganhar tempo. Agradeceu à atendente que enfim trouxe o chip solicitado enquanto ele se perdia em seu perfume novo, embasbacado em notá-la colada nele de repente.

— Se é por  falta de adeus... - beijou-o no rosto, no canto da boca. - Tchau, Marola!

Esperta, gostosa. Piranha... Maldita! Marola se deu todinho pra ela, maluco, ficou até bobo. Só se deu conta do que ela fez quando Krystal já tava se rebolando no caminho pra casa e a filha da puta ainda teve a pachorra de virar, piscar de novo e perguntar do outro lado da rua se agora ele tava satisfeito.

A Teoria do CorreOnde histórias criam vida. Descubra agora