O céu da manhã de um novo dia se abriu junto às portas dos comércios fechados pela tal força maior representada pelas correntes de ouro no peito do vagabundo trajado de Lacoste descendo o morro arrastando sua Kenner pelos paralelepípedos.
Saído dos porões com a cara lavada e a marra de sempre, não fosse a troca do costumeiro boné pelo lenço negro com o qual os envolvidos cobriam a cabeça nos dias de confronto, tradição antiga da facção, não havia nele preocupação alguma em perder sua frente de morro pro BOPE. Como o seguro morreu de velho, entretanto, seguia cercado de
seguranças tão bem armados quanto ele, dono do puta fuzil AK-47 adesivado com a máscara do assassino Ghostface agora atravessado nas costas em respeito à moradora chorona a quem consolava.Nascido e criado no Cabo, Marola era o que alguns chamavam de traficante à moda antiga, com discurso sobre o quanto preza pela favela, sua gente e suas dores. Bandido com consciência social, sabe? Agindo melhor que muito político frequentador de seus bailes e usuários de seus produtos. Consciente de que qualquer um portando um russo daqueles conseguia ser temido, ele gostava de, acima de tudo, ser respeitado e respeito ou você faz por onde ou você não tem.
Esses papo de honra e postura que todo metido a brabo gosta de dar.
Beijou a mão de dona Ana Maria e pediu desculpas em nome do Corre. Pra inocente igual os três finados ele dava pêsames e sentia dó, claro. Não deixava de ser triste ver a morte procurar quem num quer papo com ela enquanto dança com os maluco do bando dele. Pra quem ficava com a dor da perda inesperada, entregou cuidado e a atenção que escondia o fato daquelas balas perdidas o estarem procurando, no fim das contas, afinal Marcilinho, como a senhora chamou por descuido, ainda era um menino bom por baixo de tanta marra, tatuagem e cheiro de droga.
O errado que às vezes acerta e a atitude boa de, sei lá, trocar meia hora de papo, dar uma boneca de presente pra filha de um dos finados e fazer carinho no cabelo desgrenhado de quem chorou a noite inteira a partida do único filho jogava a maldade pra baixo do tapete por um tempo.
— Sabe que eu cresci com os três, dona Namaria. Tudo moleque bom, trabalhador, dava até gosto de ver. Nunca aceitaram papo errado e olha que eu cansei de dar, hein!? – riu sem muito jeito para a mais nova órfã da área, escondida atrás da avó. – Qual foi, dona Namaria? Tá precisando de alguma coisa? Ouvi dizer que a senhora tá preocupada com as custa, é verdade?
— É sim, meu filho. Eu tô correndo tudo quanto é gente pra inteirar, mas eu tenho medo de num conseguir.
— Quê isso, dona Namaria? Precisa se humilhar atrás de esmola de vizinho, não. Pode deixar que eu num vou deixar a senhora penar com essas coisa de enterro não, vou mandar Gracinha correr atrás do velório mais bonito pra quando a senhora sair do IML poder se despedir do filho da senhora e o dos do seu Zé com a dignidade que a senhora merece, já é?
— Ô, meu filho. Deus te abençoe! – e lá se ouviu mais um breve sermão sobre como mãe nenhuma devia chorar uma dor dessa.
Nisso ele até concordava, mas em partes. Marcílio era do tipo que fazia tudo pra mãe dele não chorar. A dos outros, talvez fosse ele o culpado do pranto. Sabe como é, ossos do ofício que chamava sem descanso, mas antes de ir beijou Namaria e fez sua última promessa.
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A Teoria do Corre
Roman d'amourKrystal largou tudo e todos no Morro do Cabo pra trilhar uma carreira brilhante como artista plástica no exterior. Retornando após 10 anos com o desejo de montar uma escola de artes na comunidade, ela precisa buscar a permissão da facção local, um p...