A Teoria do Conceito

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Victória era um doce de menina muito esperta.

Com 10 anos, ela conseguia ser a garotinha fofa brincando de bonecas enquanto assistia filmes da Barbie usando seu pijama de unicórnio e, ao mesmo tempo, a garota madura que compreendia o cárcere do pai e a seriedade e erro da tia Gracinha trabalhar pro crime organizado pra sobreviver. Nessa idade, também sabia ser muito rude que o jornal falasse dela daquele jeito. Antes de chamarem Maria do nome que ela não gostava, trocou de canal pra assistir desenho.

Krystiellen deu graças a Deus, sem aguentar ouvir mais nada sobre o encontro da cabeça pertencente ao corpo desmembrado espalhado por latas de lixo das comunidades rivais como um recado da Tropa do Corre. Cética e insensível, limitou-se a ver esse show de horrores da TdC como uma pedra no sapato agora que precisava convencer seus voluntários de uma segurança pouco garantida, ainda mais agora com as facções trocando suas declarações de amor.

Lá fora o clima andava estranho. Sem bandeiras e lenços pretos, mas ainda assim as rondas aumentaram, os sentinelas mudaram. Os vapores mudavam de posição a cada hora e por vezes desfilavam grupos de guerreiros como numa parada militar descontraída, trocando a banda marcial pelas caixinhas de som tocando proibidão no talo. Se comentava do sumiço de alguns dos homens cujo último paradeiro conhecido era a caçamba da Amarok dirigida por Marola, que agora ostentava no braço um curativo honroso. Soube pelas fofocas que o tal malandro esquartejado quis lutar com Maria da Graça pela própria vida e pra defender a amiga Marcílio tomou uma facada. O resto ela preferiu nem saber.

Dona Dita, entretanto, continuava pasma com a crueldade dos tribunais do crime. Descambaria em críticas não fosse pela menina não possuir idade, tampouco dimensão real dos atos da madrasta. Inocente sem saber quais as reais atribuições de uma contenção, veio para o colo da avó postiça comer seu pedaço de pudim enquanto ela trançava seu cabelo. Apesar de reconhecer os esforços de tia em aprender penteados afro para cuidar de seu crespinho, Celly ainda não fazia nagôs tão bem quanto a vovó brava da dinda Ellinha, nem cantava tão bonito que deixou sua dor, a pele preta e a voz na avenida no processo. Tudo bem que ela não chegava a ser uma Elza Soares mas dava uma paz...

De preta pra preta. De preta pra pretinha. Todas mulheres do fim do mundo cantando até o fim

Ellinha sentiu o coração aquecer e esse resgate da infância onde esteve no lugar de Tória serviu de inspiração e lembrete para correr no ateliê dar conta do que menos teve tempo de fazer nesses dias: Pintar!

Ateliê arejado graças à disciplina de dona Dita com os afazeres domésticos, uma sorte contra o mofo típico do clima tropical. Deus a livrasse de perder seus caríssimos e sensíveis materiais. No bloco de rascunhos pouco usado nesse corre-corre, testou com carvão como chegar à exata textura de cabelo crespo trançado, ideias para compor “A Graça de Maria”. A pose tranquila digna de uma imagem sacra. Sob o manto sagrado, pintado de sereno azul, uma moça negra despida pairava num céu, pousada em nuvens de tons rosa-pastel. O peito plano agora coberto pelo esboço das finas tranças loiras caídas sobre a cintura, a virilha coberta por um tecido cuja pintura realista fazia notar ser um cetim mais transparente, de modo a revelar o falo da modelo sem destoar da estética etérea. Os braços esguios, direito semi-erguido ao topo, o esquerdo rente a face de forma a cobri-la parcialmente com flores brancas e ramos de alfazema, expondo apenas os lábios vermelhos tão característicos aos olhos da encantada espectadora.

— Uau! Parece uma obra de arte, dinda!

— Que bom, né? – puxou a máscara de proteção. – Até porque é uma obra de arte.

— Ih, é né? Foi mal... É que tá tão bonito as cores, a pose. A modelo parece a tia Gracinha, olhando assim.

— Porque é a sua tia Gracinha, meu amor.

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