Se o sono é um ensaio da morte, Rapunzel pensou, esta cama é o meu caixão. Havia dias em que não suportava nem mesmo linhas de luz nas páginas dos livros abertos abandonados no chão, na escrivaninha, escancarados no canto da cama. Ela se escondia de baixo dos lençóis. Ali, naquela escuridão quente, nada acontecia. Era calmo. Ela acordava e adormecia intermitentemente, e seu estado de consciência ficava tão inerte, tão absorto em si, que ela não saberia dizer quando dormiu e quando estava desperta. Às vezes, o ruído ou o sussurro de vozes sobrepostas a fazia companhia; elas poderiam assustá-la ou não, mas, de qualquer modo, ela poderia aceitar o terror. Conviver com ele. O que a forçava a sair de suas próprias muralhas e retornar ao mundo? Uma alucinação intensa, um delírio arrebatador, um estímulo externo inescapável: o toque do despertador anunciando a hora do remédio, Matt entrando eu seu quarto para pedir algo.
Naquele dia, ela deixou sua cama ao som do despertador. Tomou seu remédio, e durante esse ato cogitou a necessidade de ter de trocar sua medicação – isso seria exaustivo, e a simples possibilidade aumentou sua ansiedade. Limpou a boca após beber um longo copo d'água e captou uma palavra em meio a muitas: estresse.
Estresse esse que a acompanhou até a casa de Ally Fell, que também era seu consultório. Enquanto andava, ela alucinou sombras atrás de si, inclusive assustando-se com a sua própria. Ao finalmente chegar, jogou-se na cadeira de espera e abraçou-se aos joelhos no afã de atenuar o formigamento em suas pernas.
Ela ouviu a porta abrir e levantou o rosto. Então, para sua surpresa, deparou-se com Klaus saindo da sala ao lado de Ally. Ele mostrou-se também surpreso, embora não igualmente. O original desfrutou da visão: Rapunzel, um tanto descabelada, um tanto desconfortável naquela cadeira, o arregalar de seus olhos marrom-escuro que pendia ao ocre sob a iluminação. Olhos de melaço, cujo olhar era docemente melancólico.
"Você", ele pronunciou.
Ally encarou os dois, suspeita, e anunciou para Rapunzel: "Já te chamo."
Klaus aproximou-se à medida que Ally retornou a sua sala. "É engraçado, vivemos na mesma cidade e só depois de nos encontrarmos pela primeira vez não paramos de nos cruzar por aí." Ela não respondeu. "Por que nunca te vi aqui?"
"Hoje cheguei dez minutos antes."
"E eu saí quinze minutos antes. Isso nos dá vinte e cinco minutos para tomarmos um sorvete aqui perto."
Ele teceu um gestocom a cabeça para a saída, e Rapunzel olhou para o corredor pelo qual teriamque passar. Suspirou, encolheu os ombros por um segundo e, relutantemente, semrefletir demais, agarrou a alça de sua bolsa que estava caída no chão elevantou-se. Ela ainda estava ajeitando a bolsa nos ombros quando alcançou o passode Klaus.
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"Eu quero menta com chocolate", Rapunzel disse ao sorveteiro.
"O mesmo pra mim."
Ela abriu a bolsa para pegar o dinheiro, mas Klaus já estava pagando. O parque, localizado bem em frente à casa de Ally, era um ambiente muito verde e muito aconchegante, com uma pista de corrida, um playground, algumas quadras esportivas e bancos de madeira. Eles se sentaram abaixo de uma árvore.
"Obrigada", ela disse timidamente. Então levantou os ombros como se levantasse um escudo, uma casca, e fitou seu sorvete. Tinha tomado café da manhã? Não, provavelmente não. Mas o sorvete estava gostoso, o calor era agradável e ela desejou que isso bastasse.
"Quem cometeu o crime de te deixar tão triste?"
"Não foi ninguém em específico." Ela tomou mais um pouco do sorvete. A tranquilidade que os rodeava parecia erguer uma redoma, intensificando o constrangimento natural daquele silêncio. "E você? Quero dizer, se estiver triste."
"Apenas chateado com algumas pendências. Problemas de família, coisas da cidade."
"Ah, eu entendo. Deve ser por isso que nós dois precisamos de terapia."
Ele riu. "Como Mystic Falls está te tratando?"
"Como uma merda, como sempre." Ela revirou os olhos. "Você é novo por aqui, certo? O que te fez escolher nossa pitoresca cidadezinha?"
"Eu nasci aqui."
"Isso não significa muito."
"Significa para mim."
Ela franziu os lábios. Na indecisão de continuar ou não conversando, a curiosidade tomou impulso. "Deve mesmo, sabe, eu escuto falar muito sobre você e a sua família."
"Coisas ruins, eu suponho."
Dessa vez ela torceu os lábios. "Coisas ruins", repetiu, sem pensar. Mas não compreendia a profundidade dessas palavras, e tampouco a veracidade dos boatos – ouvira dizer que os Mikaelson eram perigosos, especialmente Klaus, mas ninguém nunca explicou o porquê, ou ela nunca conseguiu prestar atenção o suficiente nas frases soltas captadas durante as horas de trabalho.
"Eu tenho uma reputação e tanto." Ele falou isso com uma pontada de tristeza. Se ela soubesse da metade.
Ela esboçou um sorriso torto, virando-se para ele, embora ainda não o olhasse nos olhos, e ele, inesperadamente tocado por aquele mínimo gesto, pensou no quão distante aquela moça angelical estava dele. E Rapunzel, por sua vez, pensava na sua própria reputação – no que ela desejava que ele não soubesse, nos comentários e histórias que ela temia ele ter ouvido. "Eu também."
"Não me diga... O que há de escandaloso na sua história?"
Rapunzel soltou uma risada sem humor. Ela respirou fundo uma vez e brincou com seus dedos, entrelaçando-os, apoiando o potinho de sorvete vazio no colo. Seus ombros levantaram como se ela erguesse uma muralha ao redor de si. Sentiu o olhar de Klaus e então sentiu suas bochechas esquentarem. "Sou esquizofrênica", ela disse de uma vez. A curiosidade ferveu em seu sangue e ela se forçou a olhar para ele, para ver sua reação: um tanto surpreso, mas não havia o desprezo, o medo ou o escárnio com a qual ela estava acostumada. Suspirou longamente, acalmando-se. "Você realmente não fica muito aqui. As pessoas comentam."
"É uma cidade pequena. Todos se conhecem, as notícias correm – os fatos e os boatos."
"E as mentiras", ela completou. Suspirou. "Eu ignoro a sua reputação e você ignora a minha, que tal?"
Klaus desenhou um sorriso de canto. "Feito."
Ele ofereceu a mão para um comprimento formal. Ela aceitou com um sorrisinho, que foi rapidamente desfeito – ela apontou para o potinho vazio que ele segurava. "Posso jogar isso fora?"
"Claro."
Rapunzel marchou até a lixeira mais próxima segurando os dois potinhos e livrou-se deles. Klaus a observou caminhar e passou pela sua cabeça, sem que ele compreendesse o motivo, tão breve como a brisa que balançou os cabelos de Rapunzel, que agora não haveria mais volta, que ele já estava encantado por ela. Ally apareceu em seu campo de visão logo depois.
Rapunzel não notou a presença da terapeuta, e assustou-se assim que ela chegou ao seu lado. "Ally! Que susto!", ela afirmou, uma mão no coração.
"Susto fui eu que tomei, mocinha, quando não te vi na sala de espera."
"Desculpe." Ela olhouas horas no celular e tinham se passado dez minutos do seu horário. Mordeu olábio inferior e virou-se para acenar uma despedida para Klaus, que acenou devolta. Ao atravessar a rua, ela falou para Ally, como se ainda estivesse tentandoanalisar a situação e, ao mesmo tempo, orgulhosa de si: "Eu acho... que euestava flertando. É, sim, eu estava."
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Rapunzel • N. Mikaelson
FanficA vida de Rapunzel Donovan sempre esteve de cabeça para baixo: diagnosticada com esquizofrenia na adolescência, ela ressente o fato de não ter podido assumir a responsabilidade pelos irmãos e se culpa pela negligência da mãe. Mas ela tinha sua própr...