"Você tá ouvindo vozes?", o homem perguntou. Rapunzel captou sua fala como a mesma objetividade banal com que se faz um pedido. Ela não percebeu a rudeza por trás dela, o desgosto. Resolveu ignorar, de qualquer forma, e apenas pôs a cerveja sobre o balcão. Certa vez, ela fingiu que estava ouvindo vozes a fim de se livrar de um cliente inconveniente. No entanto, as vozes que Rapunzel costumava ouvir não falavam com ela: ruídos de conversas sobrepostas, sussurros, gritos, sempre ininteligíveis. Também ouvia alguém chamando seu nome, ora como um sussurro assustador, ora como um grito, ora com uma formalidade crível que, na maioria das vezes, a fazia buscar pelo locutor.
Mas agora ela não estava tendo alucinação nenhuma. Caminhava para lá e para cá em seus afazeres sentindo-se mais leve, como se tirasse um peso das costas. Ou melhor, da mente. Pela manhã, em sua sessão de terapia, Ally a ajudou a entender que aquele sentimento fulgurante de injustiça, um sentimento sem direção que era como um arco e flecha sem alvo que acertava seu coração do nada, uma raiva do mundo que ela não sabia de onde vinha e com a qual não se identificava e não tinha forças para lutar contra, isso tudo era luto. Um luto que chegou de repente, chutando a porta e deixando que a tempestade do lado de fora adentrasse seu salão interior, que abriu todas as janelas para todos os traumas e deixou rastros de sangue pelos corredores, que maculou seus sonhos e sacralizou memórias que até pouco tempo eram simplesmente alegres e não retratos utópicos da felicidade.
Ela estava enlutada por Vicki, e evidentemente isso era terrível, mas Rapunzel tinha para si que reconhecer seu sofrimento era um grande passo. Um singelo sorriso de orgulho formigou em seu rosto, mas antes que ela pudesse sorrir, Richard Lockwood sentou em sua área. Seus olhos de falcão a capturaram na mesma hora, e seu quase-sorriso desfez-se completamente. Ela revirou os olhos.
"Deixa de drama, Rapunzel."
Ela pôs seu paninho no ombro, andou até Richard, parando numa distância segura de um banco. Cruzou os braços. Apertou seus lábios até eles formarem uma linha. "Ok. Vamos conversar, eu e você, agorinha."
Ele balançou a cabeça. "Aqui não, você sabe. Não vamos falar sobre assuntos pessoais em público..."
Ela bateu uma mão no balcão, o que sobressaltou Richard, mas ela não elevou o tom. "Não podemos nem conversar, certo, certo, é como quando estávamos juntos, não é? Vamos conversar no seu escritório ou em um motel na saída da cidade, que tal?" Ele não respondeu. "Você queria conversar, eu tô aqui."
O prefeito abaixou o olhar, deixando reluzir em seus olhos negros uma pontada de culpa que atravessou o coração de Rapunzel. Era sempre assim. Um relance de ternura e ela já estava na cama dele. Mas não dessa vez, não mais, nunca mais. "Eu nunca quis te ofender."
Ela balançou a cabeça. "Está tudo bem, de verdade. Nunca me iludi pensando que você desistiria de tudo por mim, nem me ofendi por termos terminado. Tudo bem, tudo ótimo." Ela enxugou uma lágrima em sua bochecha. Sua voz estava começando a falhar. Droga. "Eu só... eu só preciso saber, Richard, por favor, se o que te envergonhava, envergonha agora, é você ter traído sua mulher ou você tê-la traído comigo."
Ele abaixou o olhar novamente. Ela já estava chorando, e ele já estava se arrependendo de ter ido ao Grill em busca de um drink.
O choro de Rapunzel se intensificou, e Richard saltou de sua cadeira para contê-la. "Não chore, não chore", ele pediu, e ela pensou em como ela era burra, como ela fora fácil. O que tinha acontecido antes não lhe ensinara nenhuma lição sobre a vida? Não, aparentemente só a jogou em relacionamentos fadados a autodestruição. Ela só queria alguém que não a desprezasse como ela mesma se desprezasse, oh Deus, como isso era patético. Richard segurou seu braço e tentou empurrá-la para longe, mas ela se soltou e afastou-se sozinha.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rapunzel • N. Mikaelson
FanfictionA vida de Rapunzel Donovan sempre esteve de cabeça para baixo: diagnosticada com esquizofrenia na adolescência, ela ressente o fato de não ter podido assumir a responsabilidade pelos irmãos e se culpa pela negligência da mãe. Mas ela tinha sua própr...